Capítulo 2 - Nas Garras do Destino

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O sol mal ousava romper o véu de nuvens escuras quando Hiroshi chegou à antiga escola abandonada. Era o amanhecer, mas a luz parecia hesitante, como se temesse tocar o solo profano que sustentava aquele edifício decrépito.

A construção de madeira, outrora um farol de aprendizado e esperança para gerações de estudantes, agora se erguia como uma ruína espectral, suas paredes corroídas pelo tempo, rachadas e cobertas por um musgo negro que pulsava como veias de um corpo moribundo.

O telhado, parcialmente afundado, pendia em ângulos impossíveis, como se tivesse sido torcido por mãos invisíveis, e o prédio inteiro exibia uma inclinação sutil, quase imperceptível, como se a terra abaixo estivesse tentando engoli-lo lentamente, reclamando-o para um abismo esquecido. O vento soprava baixo entre as árvores ao redor, carregando um gemido que parecia nascer das entranhas da estrutura.

Hiroshi parou a poucos metros do portão enferrujado, o metal retorcido como garras congeladas no tempo. Um arrepio subiu por sua espinha, um frio que ele não podia atribuir apenas à brisa cortante da manhã. “Não é aqui que dizem que as pessoas veem fantasmas?” O pensamento emergiu em sua mente como um sussurro indesejado, serpenteando entre suas tentativas de manter a racionalidade.

Ele o reprimiu com força, cerrando os dentes até sentir a mandíbula doer. “Fantasmas não existem”, murmurou para si mesmo, mas sua voz tremia ligeiramente, traindo a confiança que ele tentava projetar.

Ajustou a mochila nos ombros, o peso dela uma âncora contra a inquietação crescente. Ele estava ali por um motivo lógico: seu projeto de geografia sobre a erosão do terreno e a topografia local. Nada mais, nada menos.

Mesmo assim, ao erguer os olhos para as janelas quebradas, sentiu como se elas o encarassem de volta — olhos vazios de um cadáver há muito esquecido, vigilantes, esperando cada passo hesitante que ele dava em direção ao desconhecido.

Com a câmera em mãos, ele começou sua exploração pelo exterior da escola. O terreno ao redor era um caos natural, irregular e traiçoeiro, repleto de raízes expostas que se contorciam como dedos esqueléticos emergindo da terra úmida.

O solo, saturado pela chuva da noite anterior, afundava sob seus pés, exalando um cheiro acre de podridão que se misturava ao ar gelado e invadia suas narinas como uma presença viva.

Hiroshi abriu o aplicativo de medição no celular, os dedos trêmulos enquanto tentava se concentrar na tarefa para afastar a inquietação que crescia em seu peito como uma sombra. “Topografia… inclinação… erosão…”, repetia baixinho, as palavras um mantra frágil para ancorar sua mente na ciência e na lógica, afastando os pensamentos que espreitavam nos cantos de sua consciência.

A tela mostrava uma inclinação de 3,7 graus — nada alarmante em termos técnicos, mas suficiente para justificar o desequilíbrio sutil da estrutura, como se o prédio estivesse cansado de lutar contra o tempo.

Ele tirou fotos das áreas mais irregulares, ajustando o ângulo da câmera com um cuidado quase obsessivo, como um artista capturando a decadência em sua forma mais crua. O flash refletia na lama, revelando texturas que pareciam orgânicas, pulsantes, como se o chão respirasse sob seus pés.

Foi então que algo chamou sua atenção: marcas no solo. Não eram pegadas comuns, mas sulcos profundos e alongados, como se algo pesado tivesse arrastado os pés pela terra úmida. Ele se agachou, franzindo a testa enquanto passava os dedos ao longo das bordas úmidas das marcas, a terra fria aderindo à sua pele como um segredo relutante.

“Talvez algum equipamento antigo tenha sido movido por aqui”, pensou, mas a explicação soava vazia, uma tentativa débil de racionalizar o que seus instintos gritavam ser errado.

As marcas eram frescas, a terra ainda solta e úmida, e havia um padrão nelas — um ritmo deliberado, como se o que quer que as tivesse feito soubesse exatamente para onde estava indo. Um calafrio percorreu sua nuca, eriçando os cabelos em sua base, e ele olhou ao redor, o coração acelerando enquanto esperava ver alguém — ou algo — emergindo das sombras das árvores. Mas o terreno estava deserto, envolto em uma quietude sobrenatural.

As árvores balançavam ao vento, seus galhos nus rangendo como ossos secos, e o silêncio era tão denso que parecia sufocá-lo, pressionando seus tímpanos com uma força quase física, como se o próprio ar estivesse carregado de expectativa.

Hiroshi se levantou, sacudindo a cabeça para afastar os pensamentos inquietantes que se acumulavam como nuvens escuras em sua mente. “É só a minha imaginação”, disse a si mesmo, mas as palavras soavam frágeis, dissolvendo-se no ar pesado. Ele tirou mais algumas fotos — uma poça de lama que refletia o céu cinzento como um espelho quebrado, uma fenda no solo que parecia uma ferida aberta na terra, sangrando umidade — e decidiu que era hora de entrar no prédio. “Agora é a vez de ver o interior desse lugar…”, murmurou, tentando injetar um tom de bravura na voz, embora seu coração batesse mais rápido a cada passo que dava em direção ao portão.

O portão de ferro, enferrujado e torto, estava entreaberto, suas barras retorcidas como uma boca escancarada convidando-o a entrar em um abismo desconhecido. Ele hesitou, os dedos pairando sobre o metal gelado, sentindo a textura áspera da ferrugem sob as pontas dos dedos, um toque que parecia queimar de tão frio.

Quando finalmente o empurrou, o rangido que ecoou foi agudo e prolongado, como o grito de algo que não queria ser perturbado, uma nota dissonante que cortou o silêncio e reverberou pelo terreno, misturando-se ao sussurro do vento. Hiroshi engoliu em seco, a garganta seca como se tivesse engolido areia, e cruzou o limiar.

O cheiro o atingiu imediatamente: mofo, madeira apodrecida e algo mais — um odor metálico, acre, que lembrava sangue seco misturado com ferrugem, um fedor que se agarrava ao fundo de sua garganta. Ele franziu o nariz, mas continuou, os tênis rangendo contra o chão coberto de folhas secas e detritos, cada passo um som que parecia amplificado no vazio.

O pátio interno era um cenário de desolação absoluta, um túmulo a céu aberto onde o passado havia sido abandonado. Carteiras e cadeiras estavam espalhadas como restos de um naufrágio, algumas empilhadas em montes caóticos, outras tombadas de lado, as pernas quebradas apontando para o céu como ossos fraturados de um esqueleto esquecido. Livros antigos jaziam no chão, suas páginas amareladas rasgadas e manchadas por umidade e tempo, algumas flutuando levemente com a brisa que atravessava as janelas quebradas.

Nas paredes, rabiscos de alunos desaparecidos formavam um mosaico de desespero: nomes riscados com força, como se tentassem apagar sua própria existência; datas que não faziam sentido, saltando entre décadas sem lógica; frases desconexas como “me tirem daqui” e “ele está vendo”, escritas em traços trêmulos que pareciam carregados de pavor. Hiroshi sentiu um nó apertar sua garganta, o ar ficando mais pesado, mas forçou um sorriso irônico para afastar o desconforto. “Adolescentes entediados”, pensou, tentando ignorar o peso que aquelas palavras carregavam, como se fossem gritos gravados na pedra, ecos de vozes que nunca encontrariam descanso.

Seus olhos foram atraídos por uma lousa quebrada no canto do pátio, um objeto que parecia deslocado mesmo naquele caos. Estava partida ao meio, a ponta superior queimada, as bordas enegrecidas como se o fogo tivesse lambido a superfície com raiva, deixando cicatrizes profundas na madeira. Ele se aproximou, os passos ecoando no silêncio opressivo, cada som amplificado como se o próprio espaço conspirasse para mantê-lo alerta. “Será que algum aluno fez isso?”, perguntou-se, inclinando-se para examinar melhor.

Havia algo escrito nela, quase ilegível sob a camada espessa de fuligem: “Não olhe para trás”. O aviso era simples, mas a caligrafia tremida sugeria urgência, talvez terror, como se quem o escreveu soubesse de algo que Hiroshi ainda não podia compreender. Ele riu nervosamente, o som saindo mais alto do que pretendia, cortando o ar como uma lâmina. “Ótimo, agora estou em um filme de terror”, disse em voz alta, mas o eco de sua própria voz reverberava por toda a escola aumentando sua inquietação.

Sua mente voltou a uma conversa que tivera no dia anterior com a Sra. Fumiko Sato, sua professora de geografia. Ela tinha apenas 29 anos, mas carregava uma seriedade que a fazia parecer mais velha à primeira vista — uma mulher esguia, com cabelos pretos e lisos que caíam até os ombros, emoldurando um rosto pálido e delicado. Seus óculos de armação fina, ligeiramente tortos de tanto uso, ampliavam olhos castanhos cheios de uma preocupação quase maternal, um contraste com a juventude de suas feições.

Naquela tarde fria, um pouco antes dos alunos irem embora, ela o puxara de lado, a voz baixa e hesitante, como se temesse que as palavras pudessem invocar algo indesejado. “Tenha cuidado, Hiroshi-kun. Aquele lugar tem uma história sombria. Dizem que um incêndio matou dezenas de alunos e professores décadas atrás, e desde então, ninguém se atreve a ficar lá por muito tempo.” Hiroshi descartara o aviso na hora, rindo internamente enquanto imaginava a professora acreditando em contos de fantasmas típicos de uma vila rural.

Ao caminhar, cada degrau rangia sob seus pés,. O corrimão estava coberto por uma camada pegajosa de poeira e algo mais — uma substância escura e viscosa que aderiu aos seus dedos quando os encostou por acidente, deixando uma sensação oleosa e fria que ele esfregou nas calças com nojo.

No segundo andar, o corredor se estendia diante dele, longo e sombrio, ladeado por portas de salas de aula. Algumas estavam fechadas, trancadas em segredos que ele não queria desvendar; outras estavam entreabertas, revelando trechos de escuridão que pareciam se mover sutilmente, como se algo respirasse nas sombras. Hiroshi ouviu algo — um sussurro baixo, quase inaudível, como vozes de crianças recitando uma lição antiga, as palavras indistintas mas carregadas de um tom melancólico que parecia atravessar o tempo. Ele parou, inclinando a cabeça para localizar o som, o coração batendo mais rápido, mas o silêncio voltou, pesado e opressivo, como uma cortina caindo sobre o palco, sufocando qualquer vestígio de vida.

“Estou imaginando coisas”, pensou, mas seus pés hesitaram antes de avançar, como se seu corpo soubesse algo que sua mente se recusava a aceitar. Então ele a viu: uma sala com a porta entreaberta, de onde emanava uma luz fraca e azulada, pulsando como o brilho de uma chama distante, um farol solitário em meio à penumbra sufocante. “Essa é a única sala iluminada”, murmurou, sentindo o coração acelerar em um ritmo descompassado, um tamborilar que ecoava em seus ouvidos. Ele se aproximou lentamente, cada passo ressoando como um tambor no vazio do corredor, o som amplificado pela ausência de qualquer outro ruído. Ao empurrar a porta, o que encontrou o deixou sem palavras, a respiração presa na garganta.

A sala estava cheia de equipamentos eletrônicos modernos: microfones de alta sensibilidade alinhados como sentinelas, monitores brilhando com luzes verdes e vermelhas que piscavam em um ritmo hipnótico, computadores dispostos em uma ordem meticulosa que contrastava brutalmente com o caos do resto do prédio.

As telas exibiam gráficos em movimento — linhas ondulantes que subiam e desciam em picos erráticos, como se registrassem o batimento cardíaco de algo vivo e inquieto, algo que não pertencia àquele lugar. Hiroshi franziu a testa, o choque momentaneamente superando o medo que rastejava em seu peito. “Mas como isso é possível? Não deveria ter eletricidade aqui…” Ele avistou um pequeno gerador em um canto, zumbindo baixinho, um intruso anacrônico naquele túmulo de madeira e lembranças. “Alguém esteve aqui recentemente”, concluiu, um misto de alívio e apreensão tomando conta dele enquanto dava um passo à frente, os olhos arregalados tentando absorver a cena.

Ele se aproximou da mesa principal, onde os microfones estavam dispostos em fileiras silenciosas, seus cabos enrolados como serpentes adormecidas. Os gráficos nas telas pareciam acelerar, os picos se tornando mais intensos, como se reagissem à sua presença, à sua respiração, ao calor de seu corpo no ar frio da sala. “O que será que estão monitorando?”, perguntou-se, inclinando-se para examinar os dados mais de perto.

Não havia legendas, apenas números e linhas que dançavam em um ritmo caótico, desafiando sua compreensão, como um código escrito em uma língua esquecida. Sentindo-se estranhamente ousado, Hiroshi pegou um dos microfones, o metal frio contra sua palma suada. Respirou fundo, hesitando por um momento, antes de sussurrar: “O-olá… Tem alguém aí?”

O som de sua voz ecoou pela escola inteira. Ele se arrependeu instantaneamente, o ar ao seu redor tornando-se mais denso, como uma mão invisível pressionando seu peito. “Por que eu fiz isso?”, pensou, o coração disparando em um ritmo frenético. Então, veio a resposta. Dos alto-falantes, uma voz distorcida e rouca ecoou: “S-s-sim… estamos aqui.” Era como se viesse de um abismo, cada sílaba arranhando o ar, carregada de uma presença que ele podia sentir na pele, nos ossos, mas não explicar com a lógica que sempre o guiara.

Hiroshi congelou, o microfone caindo de suas mãos com um baque surdo contra o chão empoeirado, o som ecoando como um trovão no silêncio. “Isso não é possível”, disse a si mesmo, a voz trêmula enquanto tentava desesperadamente encontrar uma explicação racional, uma tábua de salvação em meio ao mar de medo que o engolia. “Deve ser uma gravação, um truque.” Mas antes que pudesse se convencer, um estrondo ensurdecedor irrompeu do andar de baixo, um som que parecia rasgar o tecido da realidade.

O chão tremeu violentamente, jogando-o contra a mesa, e uma porta no corredor bateu com força, seguida por outra, e outra, como dominós caindo em uma sinfonia de caos. As janelas vibraram, o vidro rachado ameaçando se estilhaçar em mil pedaços, e o ar ficou denso com o cheiro acre de queimado, um fedor que invadiu suas narinas como uma memória viva.

— O que foi isso? — exclamou, o pânico subindo pela garganta como bile ácida, quente e amargo.

Ele correu para a porta da sala, os pés tropeçando nos cabos espalhados, mas o corredor havia mudado. As sombras pareciam mais longas, esticando-se como dedos famintos em sua direção, e as portas continuavam a bater sem motivo aparente, um ritmo que parecia zombar de sua sanidade. Ele teve a impressão de ver silhuetas indistintas nas aberturas — silhuetas de crianças como havia contado Sra. Fumiko, com os rostos escondidos nas sombras; professores com rostos embaçados que pareciam derreter como cera — mas quando tentava focar, elas desapareciam, dissolvendo-se no vazio como miragens. “Não é real”, repetiu como um mantra, as palavras um escudo frágil contra o medo que enraizava-se em seu peito, apertando seu coração como um torno. Ele se lançou em direção às escadas, os degraus rangendo sob seu peso em um coro de protestos, cada som um lamento que ecoava no vazio.

A cada passo, as escadas pareciam se estender, transformando-se em um corredor infinito que o prendia em sua fuga, uma armadilha de madeira e sombras. Hiroshi sentiu mãos invisíveis roçando seus braços, seus ombros, tentando segurá-lo com dedos gelados que pareciam feitos de fumaça, deixando rastros frios em sua pele. Ele gritou, sacudindo os braços para se livrar da sensação, mas o ar estava denso, como se respirasse água, sufocando-o lentamente, enchendo seus pulmões com um peso que ele não podia expelir. Passos ecoaram do andar abaixo dele — rápidos, pesados, subindo em sua direção com uma determinação que ele podia sentir na nuca, um calor que contrastava com o frio das mãos invisíveis.

Um segundo estrondo explodiu, mais próximo agora, e o chão cedeu sob seus pés com um estalo violento. Hiroshi caiu, rolando pelos degraus em uma confusão de madeira e poeira, o mundo girando em um borrão caótico de formas e sons.

Antes de perder a consciência, teve uma visão: a escola em chamas, o teto desabando em uma chuva de vigas incandescentes, crianças gritando enquanto o fogo as engolia em línguas vorazes que dançavam com uma fúria quase viva. O calor era real, queimando sua pele como se ele estivesse no centro do inferno, e o cheiro de carne queimada encheu suas narinas, um fedor que o fez engasgar mesmo em seu estado semiconsciente.

— Está tão quente… — sussurrou, as palavras se perdendo na escuridão que o envolveu como um manto pesado, arrastando-o para o nada.

Fragmentos de vozes surgiram, distantes e indistintas, flutuando em sua mente como ecos de um sonho fragmentado. “Levem eles…”, alguém disse, a voz rouca e apressada, carregada de urgência, mas Hiroshi não conseguia responder. Seu corpo estava pesado, preso entre o sonho e a realidade, os membros inertes como se pertencessem a outra pessoa. O silêncio o reivindicou por completo, um vazio que o engoliu como um oceano sem fim.

Quando Hiroshi abriu os olhos, a luz branca e estéril do hospital o cegou, ferindo suas retinas como agulhas afiadas. Ele piscou, a cabeça latejando com uma dor surda que parecia pulsar em sincronia com seu coração, enquanto vozes abafadas começavam a se formar em palavras compreensíveis ao seu redor.

Uma enfermeira organizava papéis em um canto, seus movimentos precisos e mecânicos contrastando com a confusão que girava em sua mente como um redemoinho. Ele virou a cabeça lentamente, sentindo o pescoço rígido, os músculos protestando com cada movimento, e viu um senhor idoso na cama ao lado, conversando com uma mulher de semblante preocupado, as rugas em seu rosto marcadas pela tensão, como sulcos esculpidos pelo tempo e pela angústia.

— Estou bem, Sayuri. Não se preocupe tanto — disse o homem, Kazuo, com uma voz calma que parecia carregar anos de experiência, um tom que inspirava confiança mesmo em meio ao caos, como um farol em uma tempestade.

— Kazuo, você sempre me deixa com o coração na mão… — respondeu Sayuri, apertando a mão dele com um suspiro longo e cansado, os dedos trêmulos traindo a serenidade que ela tentava manter, uma fachada frágil contra o medo que a consumia.

Antes que Hiroshi pudesse entender completamente a cena, a porta do quarto se abriu com um estrondo violento, o som cortando o ar como um trovão. Uma jovem entrou, os olhos azuis ardendo de raiva como brasas em uma fogueira, o rosto contorcido em uma máscara de fúria. Era Yuki Nakamura. Ela marchou até a cama de Kazuo, ignorando a enfermeira que tentou intervir com um gesto hesitante, os passos dela ecoando no chão de linóleo como tambores de guerra, cada impacto um aviso de sua tempestade interior.

— Vovô! O que você estava pensando?! — gritou Yuki, apontando um dedo acusador para Hiroshi, que se encolheu instintivamente, o corpo reagindo antes que sua mente pudesse processar. — Você se jogou na frente daquele idiota?!

Hiroshi ergueu a cabeça, confuso, sentindo uma onda de tontura que fez o quarto girar por um instante. — Espera, o que eu fiz? — perguntou, a voz rouca e fraca, como se tivesse corrido uma maratona, as palavras arranhando sua garganta seca.

Yuki virou-se para ele, os punhos cerrados com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos, a pele esticada sobre os ossos como uma ameaça silenciosa. — O que você fez? Se não fosse por você, meu avô não estaria assim! Ele se machucou para te salvar, seu irresponsável!

A culpa o atingiu como um soco no estômago, afundando-se em seu peito como uma pedra, pesada e fria. — Eu não pedi para ele fazer isso… — murmurou, as memórias da escola voltando em flashes desconexos: o fogo lambendo as paredes, os gritos ecoando em seus ouvidos como um coro de almas perdidas, o calor sufocante que parecia derreter sua pele até os ossos. — Foi tudo muito rápido.

— Isso não muda nada! — Yuki retrucou, o tom cortante como uma lâmina, cada palavra afiada o suficiente para cortar. — Ele arriscou a vida por sua causa, e agora está aqui por sua culpa!

— Yuki, acalme-se — interveio Sayuri, sua voz suave como uma brisa tentando apaziguar uma tempestade, mas carregada de uma firmeza silenciosa que não admitia contestação. Ela colocou uma mão gentil no ombro da jovem, os dedos delicados contrastando com a tensão no ar. — O importante é que ele está bem agora.

Kazuo sorriu, um brilho astuto dançando em seus olhos enrugados, uma centelha de humor em meio à gravidade da situação. — Hiroshi, não se culpe tanto, garoto. Isso faz parte do meu trabalho.

Hiroshi franziu a testa, ainda atordoado, a mente lutando para acompanhar. — Trabalho? Que trabalho?

— Eu sou um caçador de fantasmas — disse Kazuo, com a naturalidade de quem anuncia que é padeiro ou professor, como se fosse a coisa mais comum do mundo. — Quando te vi em perigo naquela escola, fiz o que tinha que fazer.

— Caçador de fantasmas…? — Hiroshi olhou para Yuki, buscando confirmação, esperando que fosse uma piada, uma tentativa de aliviar a tensão. Mas o rosto dela permaneceu sério, os olhos estreitados em frustração.

Ela bufou, cruzando os braços com um gesto impaciente que parecia encerrar qualquer dúvida. — Sim, e eu sou a assistente dele. E agora, por sua culpa, vou precisar de ajuda extra enquanto ele se recupera.

Kazuo endireitou-se na cama, o tom tornando-se firme apesar da aparente fragilidade física, a voz carregada de uma autoridade que não deixava espaço para argumentação. — Hiroshi, você será o assistente de Yuki enquanto eu me recupero. Quebrei a perna te salvando, então é justo que assuma essa responsabilidade.

Hiroshi piscou, atônito, o quarto girando levemente ao seu redor como se o chão tivesse se inclinado sob seus pés. — Mas eu não sei nada sobre caçar fantasmas… — protestou, a voz falhando no final, um sussurro que mal escondia sua incredulidade.

Sayuri sorriu, gentil mas decidida, inclinando-se para ele como uma mãe consolando um filho assustado, os olhos castanhos cheios de uma sabedoria calma. — As coisas acontecem por uma razão, Hiroshi-kun. Você tem a chance de fazer a diferença. Yuki vai precisar de alguém, quer ela admita ou não.

Kazuo completou, os olhos fixos nele com uma intensidade que atravessava como uma flecha: — Não é uma escolha, garoto. Você vai ajudá-la. E quem sabe… talvez descubra algo interessante no caminho.

Hiroshi sentiu o peso daquelas palavras como uma corrente se fechando ao redor de seu pescoço, um laço que o prendia a um destino que ele não escolhera. O ceticismo que sempre o definira, aquela muralha de lógica que ele construíra ao longo dos anos para se proteger do desconhecido, estava rachando, as fissuras se alargando a cada segundo.

Diante dele se abria um abismo de mistérios que ele não podia mais ignorar, um mundo que desafiava tudo o que ele acreditava. Ele olhou para Yuki, que o encarava com uma mistura de relutância e desafio, os olhos verdes brilhando como faróis em meio à tempestade, e percebeu que, quer quisesse ou não, sua vida havia mudado para sempre.

Capítulo 2 - Nas Garras do Destino