Na segunda-feira de manhã, o sol brilhava alto no céu claro de Tomita, uma pequena cidade no coração da província de Okayama, Japão. Hiroshi caminhava pelas ruas elegantes de um distrito comercial em ascensão, um contraste gritante com o restante da região, conhecido por seus templos antigos e campos de arroz que se perdiam no horizonte. Tomita era um lugar de transição: ao norte, as montanhas de Chugoku se erguiam como guardiãs silenciosas, suas encostas cobertas de pinheiros escuros que sussurravam ao vento; ao sul, o rio Asahi cortava a terra, suas águas refletindo o céu em tons de azul e dourado. A cidade em si parecia dividida entre o passado e o presente. Casas tradicionais de telhados curvos e paredes de madeira conviviam com prédios envidraçados e placas luminosas anunciando cafés modernos e lojas de conveniência.
O distrito comercial onde Hiroshi caminhava era o símbolo dessa modernização. As ruas, pavimentadas com asfalto novo, eram ladeadas por postes de luz estilizados e árvores jovens plantadas em fileiras perfeitas, suas folhas ainda frágeis tremendo na brisa matinal. O som de buzinas distantes misturava-se ao canto ocasional de um pássaro, enquanto trabalhadores em ternos impecáveis cruzavam o caminho de estudantes de bicicleta, suas mochilas balançando nas costas.
Havia um cheiro no ar — uma combinação sutil de café fresco vindo de uma cafeteria próxima e o aroma terroso que subia do solo úmido após a chuva leve da noite anterior. Era um lugar vivo, mas com um pé fincado na calma rural que Okayama carregava como herança.
Hiroshi, no entanto, mal prestava atenção à beleza ao seu redor. Seus pensamentos estavam em outro lugar, girando em torno de uma única pergunta que o atormentava desde o fim de semana: Como cheguei a isso? Investigando fantasmas? Ele ainda podia sentir o peso das palavras de Kazuo. Ajustou a mochila surrada nos ombros, sentindo o calor do sol nas costas, e ergueu os olhos para o prédio à sua frente.
O edifício onde Yuki trabalhava era uma anomalia em Tomita. Moderno e sofisticado, com cinco andares de vidro espelhado que refletiam o céu e as montanhas distantes, parecia mais um escritório corporativo do que o quartel-general de alguém que caçava espíritos. A fachada era impecável: linhas retas, janelas amplas e uma entrada automática de portas duplas que zumbiam suavemente ao se abrir. Uma placa discreta ao lado da porta dizia apenas “Nakamura Ghost Search Center” — em japonês, “中村幽霊捜索センター” (Nakamura Yūrei Sōsaku Sentā) — gravado em letras pretas sobre fundo branco, um nome que soava quase clínico, desprovido de qualquer misticismo.
Ele imaginara algo bem diferente: talvez uma casa velha com telhado torto, lanternas de papel penduradas e um ar de mistério gótico. Não isso. Não um lugar que poderia facilmente abrigar advogados ou contadores.
Passando pelas portas automáticas, entrou no saguão. O ar condicionado o envolveu como uma brisa fria, um alívio bem-vindo após a caminhada sob o sol. O espaço era pequeno, mas elegante: o chão de mármore claro refletia a luz suave que entrava pelas janelas, e uma recepcionista jovem, com fones de ouvido brancos, digitava em um computador atrás de um balcão baixo. Ela ergueu os olhos por um segundo, acenou com a cabeça em reconhecimento e voltou ao trabalho, como se a presença dele fosse parte da rotina. Uma música ambiente flutuava no ar, tão leve que mal se percebia, acompanhada por um aroma sutil de incenso que parecia vir de lugar nenhum. Hiroshi olhou ao redor, notando um vaso com uma planta ornamental — um bonsai bem cuidado — e o elevador de portas cromadas ao fundo. Tudo parecia… normal demais.
— Isso é um escritório de caça-fantasmas ou uma filial de banco? — pensou, apertando o botão do elevador. As portas se abriram com um ding discreto, e ele subiu até o terceiro andar, onde Yuki o esperava.
Ao chegar ao corredor, encontrou a porta 305 entreaberta. Empurrou-a com hesitação, e o interior do escritório o surpreendeu ainda mais. Era um espaço organizado, mas cheio de contrastes. À esquerda, uma mesa de vidro sustentava um laptop moderno, um monitor extra e uma pilha de papéis perfeitamente alinhados. À direita, uma prateleira exibia uma coleção eclética: cristais brutos e polidos, alguns brilhando sob a luz que entrava pela janela, ao lado de pequenas estatuetas de madeira representando divindades budistas — Kannon, talvez, ou Jizo, ele não sabia ao certo. Em um canto, um altar minúsculo com flores secas e um prato de cinzas de incenso soltava aquele aroma que ele sentira no saguão, agora mais forte, misturado ao cheiro metálico dos equipamentos eletrônicos espalhados pela mesa.
Yuki estava de pé, de costas para ele, ajustando um dispositivo que parecia um termômetro digital com um visor iluminado. Vestia uma blusa preta simples e jeans escuros, o cabelo liso descia um pouco mais abaixo dos ombros e tinham uma cor única, mas que não parecia ser artificial. Não havia nada nela que gritasse “mística” — até ela se virar e fixar nele aqueles olhos azuis intensos, cheios de uma calma que o deixava desconfortável.
— Você está atrasado — disse ela, sem rodeios, cruzando os braços.
Hiroshi deixou a mochila deslizar até o chão com um baque úmido. — Desculpa, não acordei planejando caçar fantasmas. Ainda tô tentando engolir essa loucura.
Yuki suspirou, um som curto e afiado, e voltou ao aparelho. — Isso não é um jogo, Hiroshi. Temos um caso em Maniwa hoje. Apartamento 304. Dizem que o condomínio inteiro tá amaldiçoado e que tudo começou no 304.
— Amaldiçoado? — Ele deu um riso seco, quase engasgando. — Claro, porque é sempre culpa dos espíritos.
— Não espero que confie em minhas palavras— retrucou ela, pegando um medidor de campos eletromagnéticos que piscava como um coração doente. — Quero que veja com seus próprios olhos. Terceiro andar, prédio velho. Mães que moraram lá morreram em acidentes que ninguém explica. As famílias estão desesperadas. O lugar todo foi isolado e o condomínio interditado.
Hiroshi inclinou a cabeça, o sarcasmo murchando. — E você faz o quê? Aponta esses brinquedos para as paredes e espera um susto?
Ela o encarou, os olhos estreitos como lâminas. — Eu investigo. Meço o que tá escondido — temperatura, eletricidade, sons. E, se precisar, faço rituais para limpar a sujeira.
— Como na escola velha? — perguntou ele, as lembranças daquele caso — sombras dançando, ruídos que o fizeram pular — ainda rastejando em sua mente.
Ela assentiu, arrumando os equipamentos numa mochila preta reforçada. — Exato. Aquilo tá resolvido. Não era fantasma.
— Mas eu vi coisas, Yuki — insistiu ele, a voz mais firme. — Sombras, barulhos… parecia vivo.
— Monóxido de carbono — disse ela, fria como gelo. — Vazamento na ventilação. Alucinações. Os ruídos eram ratos no telhado. Caso morto.
Ele bufou, o alívio lutando com a frustração. — Então eu quase virei carniça por gás e ratos? Ótima estreia.
Yuki deu um sorriso fino, quase cruel. — Nem tudo é tão limpo, Hiroshi. O que parece simples às vezes é só a casca de algo pior.
Ele hesitou, o peso das palavras dela cravando-se fundo. Pegou a mochila do chão. — Tá, Maniwa então. Mas se for outro vazamento, quero um aumento.
Ela riu baixo, um som que cortou o ar como vidro quebrando, e apontou para a porta. — Vamos ver se você ainda tem estômago para pedir isso depois.
A viagem até Maniwa foi tranquila. O carro de Yuki zumbia suavemente pelas estradas sinuosas, um som baixo e reconfortante que parecia embalar o caminho. Às margens, os arrozais se estendiam como tapetes de um verde suave, brilhando sob a luz morna do sol da manhã, com reflexos dourados dançando nas folhas. O céu era um azul sereno, salpicado por nuvens leves que flutuavam preguiçosas sobre as montanhas ao longe, cujos contornos suaves pareciam abraçar a paisagem com calma. Hiroshi encostou os dedos no vidro fresco da janela, sentindo a brisa que entrava pela fresta, e o silêncio entre ele e Yuki era leve, como uma conversa não dita, cheia de cumplicidade.
Quando o condomínio surgiu na curva, porém, algo mudou. O prédio de concreto cinza, desgastado pelo tempo, parecia deslocado naquela paisagem serena — suas janelas quebradas refletiam a luz de um jeito estranho, quase opaco, como se engolissem o brilho do sol. A estrutura tinha um charme rústico, com trepadeiras verdes subindo pelas paredes, mas havia uma quietude incômoda ali, como se o lugar guardasse segredos que não queria contar. O ar parecia levemente pesado, carregado com um leve cheiro de umidade e terra, uma sensação que pesava nos ombros sem explicação. Um som distante, talvez o farfalhar das folhas ou um eco abafado, trouxe uma pontada de curiosidade misturada com inquietação.
Hiroshi desceu, o vento cortante mordendo sua pele, e viu marcas no chão — sulcos fundos, como se algo com garras tivesse rastejado até a entrada. Uma placa enferrujada balançava ao vento, “Maniwa Heights” escrito em letras tortas, algumas pingando uma tinta preta que escorria como sangue fresco. Yuki saiu do carro, a mochila pendurada no ombro, os olhos fixos no prédio. — Chegamos — disse, a voz baixa, quase engolida pelo zumbido do vento. — O 304 é no terceiro andar. As mães que morreram lá… ouviam arranhões nas paredes antes de tudo desmoronar.
Hiroshi engoliu em seco, o riso preso na garganta. — Arranhões? Ratos, então?
— Não ratos — respondeu ela, já andando para a entrada. — Algo que falava com elas à noite, em sussurros que não paravam.
— Está… pingando? — murmurou Hiroshi, enquanto fixava o olhar na parte inferior da placa. — Esse lugar não é velho? — perguntou, enquanto se agachava para examinar o líquido que caía no chão, como se estivesse tentando entender o inexplicável.
— Esse prédio existe há mais ou menos dois meses — retrucou Yuki, enquanto encarava Hiroshi com um olhar assustado. — A empresa havia terminado de construir e liberado em questão de meses. E nas primeiras semanas em que os moradores se mudaram para lá, foi que o prédio sofreu todas essas transformações.
— Transformações? — respondeu Hiroshi, com um tom sarcástico enquanto segurava um riso de canto de boca. — Parece mais que um furacão passou por aqui. Como pode um lugar que foi construído em dois meses estar desse jeito?
O condomínio Maniwa Heights era um projeto ambicioso, com um único prédio principal de cinco andares, projetado com linhas modernas e janelas amplas que deveriam oferecer vistas deslumbrantes da paisagem circundante, um belíssimo condomínio de luxo. No entanto, agora essas janelas estavam quebradas, e as paredes pareciam ter sido atacadas por algum elemento da natureza. Havia um estacionamento coberto para os moradores, com suporte para carregar carros elétricos, sendo alimentado por paíneis solares, e um segundo prédio de dois andares, que servia como um prédio de emergência, mas até ele parecia ter sido afetado pelo mesmo mal-estar que envolvia o prédio principal.
O saguão parecia um túmulo aberto. O chão de linóleo rachado refletia uma luz pálida e acinzentada que se infiltrava pelas janelas quebradas, os últimos raios do dia lutando para atravessar o vidro sujo e embaçado. Fios expostos pendiam do teto, inertes, balançando de leve com uma corrente de ar que parecia sussurrar pelo espaço vazio. O ar cheirava a urina velha e frutas podres, um fedor que subia do chão e agarrava os pulmões. As paredes descascadas exibiam manchas escuras que pareciam pulsar quando você as encarava por tempo demais, e um elevador ao fundo estava morto, as portas entreabertas revelando um poço negro que exalava enxofre e silêncio. Hiroshi sentiu um arrepio subir pela espinha, os instintos gritando para correr. — Parece que esse lugar tá esperando pra engolir a gente — murmurou, a voz rouca.
Yuki não respondeu, subindo as escadas com passos firmes. Cada degrau gemia como um osso quebrando, e Hiroshi a seguiu, o corrimão pegajoso sob seus dedos, coberto por uma crosta úmida que parecia viva. No terceiro andar, o corredor era uma garganta estreita, as paredes marcadas por arranhões profundos que escorriam uma umidade negra, as portas dos apartamentos trancadas como caixões selados.
A porta do 304 rangeu ao se abrir, um som que era metade grito, metade lamento, revelando um vazio sufocante. O ar era denso, fétido de madeira podre e um cheiro metálico que lembrava sangue coagulado sob a pele. Cortinas rasgadas pendiam como carne esfolada, filtrando a luz do fim da tarde em feixes pálidos que iluminavam poeira suspensa, girando como larvas em um cadáver.
Yuki largou a mochila com um baque que ecoou como um golpe, tirando os equipamentos com movimentos precisos. Hiroshi ficou na entrada, o estômago revirando com um misto de medo e fascínio. — Então é aqui que você caça seus fantasmas? — perguntou, tentando soar leve, mas a voz tremia. — Não parece assombrado… parece mais um lugar que morreu e esqueceu de cair.
Yuki virou-se, os olhos brilhando na penumbra com uma intensidade fria. — Você vai mudar de ideia rapidinho. Passa uma hora aqui e vê se ainda acha que é só um prédio velho.
— Uma hora? — Ele deu um sorriso nervoso, o som morrendo rápido. — Tá, me convenceu. Por onde a gente começa?
— Temperatura — respondeu ela, pegando um termômetro digital da mochila, o visor acendendo com uma luz fraca de bateria. — Variações podem indicar atividade. Coisas que não explicamos com ‘defeitos na estrutura’.
Hiroshi se aproximou, o chão pegajoso sob os sapatos. — Tipo o quê? Fantasmas de verdade? — Ele riu, mas o som soou vazio. — Tá um frio danado aqui. Não deveria estar abafado, trancado assim?
— Boa observação — disse ela, anotando os números num caderno pequeno, a mão firme. — Quinze graus aqui, vinte e cinco lá fora. Não é normal pra um lugar fechado.
— Não mesmo — murmurou ele, os olhos varrendo o caos: uma poltrona esventrada, o estofado sangrando espuma amarela; uma mesa de centro torta, marcada por círculos de copos como olhos cegos; uma estante curvada, os livros mofados exalando um fedor de páginas apodrecidas. Era um lugar que parecia ter vomitado seus moradores e guardado os restos.
Enquanto Yuki ajustava o medidor, um arranhar baixo veio da poltrona, insistente, como unhas rasgando tecido. Hiroshi congelou. — Você ouviu isso?
— Ouvi — respondeu ela, os músculos do pescoço tensos, apontando o termômetro para o canto. — A temperatura caiu mais dois graus aqui. Não é um rato.
— Então o que é? — perguntou ele, ajoelhando-se para espiar atrás do móvel. Nada além de poeira grossa e marcas fundas no chão, sulcos que pareciam feitos por dedos humanos, não garras. Ele se levantou, o coração batendo contra as costelas. — Parou quando cheguei perto. Ratos não fazem isso.
— Não fazem — disse ela, o tom afiado. — Quer ajudar a descobrir o que é?
— Claro — respondeu ele, a curiosidade vencendo o medo. Ela lhe entregou um gravador pequeno, o plástico frio contra a palma suada.
— Aperte o botão vermelho e grava enquanto anda pela sala — explicou ela. — Se tiver algo aqui, pode se manifestar no áudio. Vamos ouvir depois.
Hiroshi segurou o aparelho, tentando aliviar a tensão com um comentário. — Me sinto num programa de caça-fantasmas. Só falta a música dramática.
Yuki deu um riso curto, quase seco. — Guarda o drama pra depois. Por enquanto, só grava.
Ele começou a andar pela sala, o gravador emitindo um leve clique enquanto capturava o silêncio sufocante. A luz do fim da tarde diminuía, as sombras se alongando pelas paredes. De repente, um som baixo veio do corredor — um arrastar lento, como algo pesado sendo puxado pelo carpete. Hiroshi parou, apontando com o queixo. — Tá ouvindo isso?
Yuki pegou a lanterna da mochila, o feixe cortando a penumbra. — Sim. Parece que vem do corredor. Vamos checar?
— Tô dentro — disse ele, os pés inquietos, seguindo-a com o gravador ainda na mão.
O corredor era uma tripa úmida, as paredes manchadas de umidade negra que escorria como lágrimas gordurosas, o carpete cinza agarrando os sapatos como lama viva. Uma luz fraca e acinzentada se infiltrava por uma janela quebrada no fim do corredor, lançando sombras que pareciam rastejar pelas bordas da visão. Hiroshi tocou uma caixa de plástico amarelada na parede, um interruptor antigo que parecia deslocado, frio e inerte sob seus dedos. — Sem energia, né? — murmurou, mais para si mesmo. — Então o que tá fazendo esse barulho?
— Não é fiação — respondeu Yuki, o feixe da lanterna varrendo o corredor. — Pode ser algo se movendo. Ou o prédio ‘faland
o’. Esses lugares velhos guardam ecos.
Eles voltaram ao 304, o silêncio no apartamento mais pesado, como se o ar tivesse engolido o som. Estavam medindo há poucos minutos quando uma batida baixa veio do quarto ao fundo — um som abafado, como um punho batendo contra madeira. Hiroshi parou, o gravador ainda na mão. — Outra vez. Tá ouvindo?
— Sim — disse Yuki, já apontando o medidor para o quarto, os números no visor caindo lentamente. — Vem dali. Vamos devagar.
Trocaram um olhar rápido, e Hiroshi sentiu um frio subir pela espinha — não medo puro, mas uma curiosidade que começava a se misturar com inquietação. — Canos, talvez? — sugeriu, tentando se agarrar a uma explicação racional.
— Talvez — respondeu ela, liderando o caminho com passos cautelosos.
O som cresceu conforme se aproximavam, batidas irregulares misturadas a um arrastar úmido que parecia vir de dentro das paredes. O quarto era pequeno e fétido, o colchão jogado no chão coberto por manchas escuras que cheiravam a bile, uma cômoda torta rangendo sozinha, e uma cortina rasgada pendendo como pele arrancada. Yuki tocou a parede, os dedos sentindo uma vibração sutil, quente, como se algo respirasse do outro lado. — Pode ser canos — disse, batendo na superfície com os nós dos dedos. O som parou de repente, mas o silêncio que caiu era pior — denso, vivo, esperando.
Hiroshi forçou um sorriso. — Você tem um jeito com paredes, hein?
Yuki não riu, os olhos fixos na parede, onde uma rachadura fina começou a se formar, escorrendo uma gosma preta que fedia a carne podre. — Ou ela tem um jeito comigo — respondeu, a voz baixa.
— Acha que… sabe que a gente tá aqui? — perguntou ele, o coração batendo mais rápido.
— Talvez — disse ela, os olhos escuros brilhando com uma certeza que o fez engolir em seco. — Vamos continuar.
O silêncio durou pouco. Um estalo seco veio do teto, como madeira cedendo sob pressão, e Hiroshi olhou para cima, vendo uma rachadura se abrir, longa e tortuosa, pingando uma substância negra que chiava ao tocar o chão. — Isso tá ficando pior — disse, a voz carregada de tensão.
Yuki hesitou, observando a rachadura crescer, as bordas pulsando como veias. — Não é só aqui — disse, apontando o termômetro para o teto. — A temperatura tá caindo mais rápido agora. Tá vindo de baixo. Dos andares inferiores. Preciso descer.
— Eu vou com você — disse ele, dando um passo à frente, o corpo tenso.
— Não — cortou ela, firme, entregando-lhe o medidor e um rádio pequeno, o plástico frio contra sua palma. — Fica no 304. Monitora a temperatura e grava qualquer som. Se algo tá se movendo pelo prédio, preciso que você registre o que acontece aqui enquanto eu investigo lá embaixo.
Hiroshi pegou os aparelhos, girando o rádio com um sorriso torto que mascarava o nó no estômago. — Então eu sou a âncora, e você a exploradora? Tá, mas volta logo.
— Volto — respondeu ela, pegando a lanterna e saindo, o feixe de luz engolido pela escuridão do corredor como sangue escorrendo por uma vala.
Hiroshi ficou sozinho, o gravador zumbindo baixo na mesa de centro, um som que parecia o último suspiro de algo vivo. Ele apontou o medidor para os cantos da sala, os números oscilando como um batimento cardíaco irregular, o ar ficando mais frio, mais pesado. — Tá, seu desgraçado — murmurou, os olhos nas sombras que pareciam se mexer quando ele não olhava. — Mostra o que você tem.
Yuki desceu as escadas, cada degrau rangendo como um grito abafado, a madeira podre cedendo ligeiramente sob seus pés. O ar esfriava a cada passo, um frio úmido que se agarrava à pele como dedos gelados, trazendo um cheiro que subia do fundo do prédio — ferrugem, mofo e algo mais profundo, mais visceral, como carne deixada para apodrecer em uma cova esquecida. O corrimão estava coberto por uma crosta negra que escorria entre seus dedos, quente e viva, e ela o soltou com um estremecimento.
Chegando ao térreo, o saguão era uma caverna de sombras, o silêncio tão denso que parecia sufocar o som de sua respiração. A luz do fim da tarde, que entrava pelas janelas quebradas, mal cortava a escuridão, e o cheiro agora era insuportável — leite azedo, ferro enferrujado e um fedor doce de carne apodrecendo sob séculos de terra úmida, um aroma que fazia os olhos lacrimejarem. No canto oeste, uma casinha de concreto se agachava como um túmulo em miniatura, a porta de metal coberta por uma camada de poeira que parecia pele seca, rachada e descamando. Um cadeado quebrado pendia torto, balançando levemente como se algo o tivesse tocado, e um sussurro baixo escapava pelas frestas — unhas arranhando madeira podre, misturado a respirações entrecortadas que não vinham de um peito humano.
Yuki hesitou, o coração martelando contra as costelas, mas empurrou a porta com o ombro. O rangido que se seguiu foi um urro longo e gutural, ecoando pelo térreo como o lamento de algo que não queria ser acordado. O interior era um espaço apertado, sufocante, iluminado apenas pela lanterna que tremia em sua mão. As paredes de concreto estavam rachadas, exsudando uma umidade negra que escorria em filetes lentos, como lágrimas de alcatrão, e prateleiras tortas alinhavam-se contra elas, abarrotadas de restos do prédio — fusíveis velhos que pareciam olhos carbonizados, rolos de fio embolorado pulsando como veias, uma chave inglesa coberta de ferrugem tão espessa que parecia sangrar vermelho. O chão era uma crosta endurecida, marcada por pegadas antigas que afundavam no centro, como se algo tivesse rastejado para fora e deixado seu peso ali.
No meio do espaço, uma caixa de madeira reinava, pequena mas carregada de uma presença opressiva, as tábuas escuras e nodosas marcadas por sulcos profundos que pareciam arranhões feitos de dentro para fora. Faixas de tecido branco, rasgadas e encharcadas de um vermelho fresco, envolviam-na, pingando gotas que formavam poças no chão, cada gota tremendo como se carregasse um eco de vida. Papéis amarelados pendiam das faixas, inscritos com caracteres chineses arcaicos — traços angulares da dinastia Shang, negros e afiados como cortes abertos, que Yuki reconheceu de estudos com sua avó: selos de contenção, usados para aprisionar espíritos malignos, mas aqui estavam quebrados, a tinta desbotada como se algo os tivesse corroído. A caixa vibrava, não com movimento visível, mas com uma pulsação que ela sentia nos ossos, um ronronar baixo que parecia faminto, antigo, vindo de um lugar além do tempo. Os pregos enferrujados que a selavam estavam tortos, alguns quase arrancados, e um líquido negro escorria das frestas, viscoso e brilhante, refletindo a luz da lanterna em tons de vermelho escuro que pulsavam como veias expostas. O cheiro era fétido, uma mistura de mofo úmido, ferro podre e carne apodrecendo em segredo, mascarado por uma doçura enjoativa que arranhava a garganta como bile.
Yuki sentiu o ar ficar mais denso, os pulmões lutando contra um peso que não era apenas físico, mas mental — uma compulsão que não era dela, uma curiosidade amplificada que parecia sussurrar em sua mente, empurrando-a para a frente. Era a influência do yāo, ela sabia, uma entidade que se alimentava de emoções humanas, distorcendo-as para abrir caminho. Sua avó a alertara sobre isso: espíritos antigos podiam manipular os vivos, usando seus próprios desejos contra eles. Mas ela precisava entender o que estavam enfrentando, e a caixa era a chave. Com a ponta da lanterna, forçou uma das tábuas, o rangido seco ecoando como um osso se partindo em um silêncio mortal. Assim que a tampa cedeu, um zumbido baixo e frenético irrompeu de dentro, como asas batendo em pânico sob a terra.
A caixa explodiu em uma torrente viva. Milhares de insetos jorraram das entranhas escuras, uma maré negra e pulsante que rastejava, voava e saltava com uma fúria cega. Não eram insetos naturais, mas manifestações da energia do yāo, formados a partir da podridão acumulada no prédio ao longo de décadas — o sofrimento das mães que ali viveram, os “acidentes” que não eram acidentes, mas oferendas silenciosas que alimentaram a entidade. Eram criaturas grotescas, saídas de um pesadelo primordial: escorpiões do tamanho de mãos humanas, os exoesqueletos negros brilhando como obsidiana molhada, as caudas curvas pingando um veneno amarelo que chiava ao corroer o chão, cada gota liberando um vapor que fedia a morte; baratas colossais, as carapaças rachadas abrindo asas membranosas cobertas de espinhos, os corpos pulsando com uma gosma verde que escorria como pus vivo; centopeias longas e sinuosas, os segmentos vermelho-sangue brilhando com um brilho oleoso, cada pata terminando em uma garra afiada que arranhava o concreto; aranhas inchadas, os corpos peludos carregando sacos de veneno que pulsavam como corações expostos, os olhos múltiplos faiscando em vermelho sob a luz trêmula.
O enxame encheu o espaço, o zumbido ensurdecedor rasgando o ar como um coro de almas torturadas. Yuki gritou, um som rouco e visceral, recuando enquanto os insetos subiam por suas pernas, picando e rasgando. Um escorpião cravou o ferrão em seu tornozelo, o veneno queimando como ácido, subindo em linhas ardentes pela carne; uma barata escalou seu braço, as mandíbulas serrilhadas arrancando pedaços de pele até o sangue escorrer quente e viscoso. Ela derrubou a lanterna, o feixe girando loucamente enquanto os insetos continuavam a jorrar, cobrindo as paredes, o teto, o chão, uma massa viva que se movia como um organismo único, faminto e cego por eras.
— Hiroshi! — gritou ela, o rádio tremendo em sua mão enquanto o ligava, a voz cortada pelo pânico. — Algo tá muito errado aqui embaixo!
No apartamento 304, o grito de Yuki pelo rádio cortou o silêncio como uma faca enferrujada. — Yuki?! — berrou Hiroshi, largando o medidor, que caiu com um estalo seco no chão pegajoso. Ele correu para a porta, os dedos agarrando a maçaneta, mas ela não cedeu — estava trancada, o metal frio vibrando sob sua palma como se a entidade a estivesse segurando. Antes que pudesse tentar de novo, um estrondo sacudiu o apartamento, um trovão preso dentro das paredes. Todas as portas — do quarto, do armário, do banheiro — bateram ao mesmo tempo, abrindo e fechando em uma sequência frenética que fez o chão tremer e as janelas racharem com um gemido agudo. O som era ensurdecedor, um coro de madeira torturada que parecia a tentativa da entidade de romper as barreiras entre dimensões, usando a estrutura do prédio como um canal para sua energia.
A luz do fim da tarde, que entrava pelas janelas quebradas, começou a mudar, tingindo-se de um vermelho vibrante que não vinha do sol, mas de uma energia sobrenatural que pulsava no ar, um reflexo do “rasgo no mundo” que o yāo tentava abrir. O vermelho banhava o apartamento numa aura infernal, pulsando como veias expostas, e o cheiro mudou — de poeira úmida para algo quente e metálico, como ferro derretido misturado a carne queimada. Era a presença da entidade do 304, uma força distinta da do térreo, mas conectada, ambas partes de um mesmo mal maior.
Hiroshi virou-se, o gravador na mesa de centro girando sozinho, a fita se desenrolando em fitas negras que rastejavam pelo chão, chiando com um lamento abafado que não era humano — vozes sobrepostas, gorgolejantes, como se falassem debaixo d’água. A poltrona no canto começou a se rasgar, o estofado abrindo-se como pele cortada por dentro, revelando uma massa viva — carne cinzenta e pulsante, cheia de veias negras que se contorciam como vermes famintos, exsudando um líquido amarelo que fedia a bile e podridão. Dela emergiu uma figura grotesca, não rastejando, mas flutuando a centímetros do chão, o corpo encurvado coberto por uma pele rachada como argila seca, esticada sobre ossos que estalavam com cada movimento. Os braços eram longos e tortos, terminando em garras curvas com unhas que pingavam pus viscoso, e a cabeça pendia em um ângulo impossível, os olhos buracos fundos brilhando com um amarelo pútrido que parecia sugar a luz. A boca, um corte de orelha a orelha, escorria uma saliva negra que queimava o chão, formando sulcos fumegantes.
— Que porra é essa?! — gritou Hiroshi, recuando até bater na parede, o impacto arrancando um gemido da madeira podre. Cabelos oleosos brotaram do chão, enrolando-se em seus tornozelos como arames vivos, cortando a pele em linhas sangrentas. As paredes sangraram, um líquido vermelho escorrendo em riachos que formavam um selo circular — um pássaro em chamas, as asas quebradas pulsando com uma luz pútrida, um símbolo que representava o yāo, uma criatura mítica de destruição nascida do ódio e da vingança. A entidade avançou, lenta e predatória, os olhos amarelos fixos nos dele, e uma voz ecoou em sua mente, não falada, mas sentida como agulhas cravadas no cérebro: “Você é minha carne agora…” Ele caiu de joelhos, a visão escurecendo com imagens de um vermelho infinito, insetos rastejando em um abismo sem fim.
No térreo, Yuki enfrentava a maré viva de insetos que jorrava da caixa, o zumbido ensurdecedor preenchendo a casinha como um grito arrancado de eras perdidas. Escorpiões negros do tamanho de punhos rastejavam pelas paredes e pelo chão, as caudas curvas balançando como foices, pingando um veneno amarelo que chiava ao tocar o concreto; baratas colossais emergiam em enxames, as carapaças rachadas brilhando com um brilho oleoso, asas espinhosas abrindo e fechando em espasmos que cortavam o ar; centopeias sinuosas deslizavam em movimentos serpenteantes, os segmentos vermelho-sangue reluzindo sob a luz trêmula, as garras minúsculas arranhando o chão; aranhas peludas se amontoavam nas sombras, os corpos inchados sustentando sacos de veneno que pulsavam como tumores vivos, os olhos múltiplos faiscando em vermelho.
Escorpiões escalavam suas pernas, as caudas cravando ferrões que queimavam como fogo líquido, o veneno subindo em linhas ardentes que faziam os músculos tremerem; baratas rasgavam sua pele, as mandíbulas serrilhadas arrancando carne em pedaços sangrentos; centopeias enrolavam-se em seus tornozelos, as garras perfurando até o osso; aranhas corriam por seus braços, injetando uma toxina que fazia os nervos gritarem. Ela gritou, batendo os braços contra as criaturas enquanto chutava o chão, esmagando dezenas em explosões de gosma verde e amarela que chiavam ao tocar o concreto. O rádio pendia em seu cinto, crepitando com o grito abafado de Hiroshi, mas os insetos continuavam a jorrar, uma torrente que cobria as paredes e o teto, transformando o espaço num ninho vivo e pulsante. Yuki arrancou uma centopeia de seu pescoço, o corpo segmentado se desfazendo em suas mãos com um estalo úmido, e correu para a porta, tropeçando enquanto os escorpiões picavam suas pernas, cada ferroada um grito engolido.
O saguão do térreo estava banhado em vermelho, a luz sobrenatural pulsando como veias expostas, refletindo nos insetos que a perseguiam, tingindo suas carapaças de um tom ainda mais grotesco. O ar estava quente e pegajoso, cheirando a enxofre e carne queimada, e um som novo ecoava pelas escadas — asas úmidas, pesadas, não dos insetos, mas de algo maior, algo preso nas sombras, batendo contra as paredes como um coração profano. Yuki agarrou a lanterna caída, o feixe cortando a escuridão vermelha enquanto subia os degraus, o veneno ardendo em suas veias, cada passo uma luta contra a dor e o peso que parecia puxá-la para baixo.
No primeiro andar, o corredor era um pesadelo vivo. As paredes sangravam, o líquido vermelho escorrendo em riachos lentos que formavam padrões tortuosos no concreto, símbolos que pulsavam com uma luz pútrida, como olhos abertos em carne morta. O carpete borbulhava sob seus pés, derretendo em poças ácidas que exalavam vapor, e os insetos a seguiam, rastejando pelas paredes e caindo do teto em tufos negros que se contorciam no chão. As portas dos apartamentos batiam sozinhas, abrindo e fechando com estalos secos, e de dentro vinham sons — gemidos abafados, risadas quebradas, sussurros em uma língua antiga que cortava sua mente.
Yuki correu, o coração martelando, o rádio balançando contra o quadril enquanto subia para o segundo andar. O ar aqui era mais denso, quase sólido, carregado de um zumbido que vibrava em seus dentes. As sombras disformes dançavam nas paredes — figuras aladas com corpos tortos, asas quebradas projetadas como se algo invisível as moldasse na luz. Uma porta à esquerda se abriu de repente, e dela escorreu uma massa de cabelos oleosos, longos e vivos, que se esticaram em sua direção como tentáculos famintos. Ela desviou, o cabelo roçando seu braço e cortando a pele em um sulco sangrento, e continuou, o grito de Hiroshi ecoando em sua cabeça.
No terceiro andar, o corredor do 304 pulsava como um organismo vivo. O chão tremia com uma batida lenta e ritmada, como o coração de algo enterrado sob o concreto. As paredes sangravam mais forte, o líquido vermelho formando o selo do pássaro em chamas, pulsando com uma luz doentia que parecia sugar o ar. O cheiro era de morte — podridão, enxofre e uma doçura fétida, como flores murchas sobre um cadáver aberto. Os insetos a alcançaram novamente, subindo pelas escadas em uma onda negra, mas Yuki não parou. Ela correu até a porta do 304, trancada e imóvel, as batidas frenéticas de Hiroshi vindo do outro lado, misturadas a um rugido gutural que não era deste mundo.
— Hiroshi! Aguenta aí! — gritou ela, batendo na porta com o ombro, mas a madeira resistia como carne viva, pulsando contra seus golpes. Os insetos rastejaram por suas pernas, picando e mordendo, e o som de asas úmidas cresceu, vindo das escadas atrás dela. Yuki fechou os olhos, o pânico cedendo a um instinto primal. Palavras emergiram em sua mente, ensinadas por sua avó em noites escuras para afastar o mal — o mantra budista “Om mani padme hum”, um cântico de proteção que ressoava com uma energia espiritual oposta à do yāo, uma força de compaixão e purificação que podia conter o mal.
Ela respirou fundo, ignorando a dor, e começou a recitar, a voz trêmula mas firme: — “Om mani padme hum… om mani padme hum…” As palavras saíram em um ritmo constante, cada sílaba carregada de uma força que ela sentia crescer em seu peito. O ar ao seu redor vibrou, o zumbido dos insetos vacilando, e os cabelos vivos nas paredes recuaram, encolhendo-se como se queimados por um fogo invisível. A porta do 304 estremeceu, as tábuas rachando em linhas finas, e com um último “hum”, ela cedeu, abrindo-se com um estalo seco.
Dentro, Hiroshi estava de joelhos, encurralado contra a parede, os cabelos oleosos cortando sua pele em linhas vermelhas enquanto a entidade pairava sobre ele. Era uma visão grotesca: um corpo encurvado, a pele rachada como argila seca esticada sobre ossos tortos que estalavam, os braços longos terminando em garras curvas que pingavam pus viscoso. Os olhos eram buracos amarelos, brilhando com uma luz pútrida, e a boca escancarada escorria saliva negra que queimava o chão em sulcos fumegantes. Ele estava pálido, os olhos vidrados, a mente quase engolida por visões que a entidade projetava — um mecanismo de defesa do yāo, que se alimentava do medo e da sanidade de suas vítimas.
— “Om mani padme hum!” — gritou Yuki, avançando com a lanterna erguida, as palavras ecoando no ar vermelho como um trovão sagrado. O som do mantra atingiu a entidade como um golpe físico, fazendo-a recuar com um rugido que rasgou o espaço, as garras batendo na parede e deixando marcas fumegantes que sangravam. Os cabelos vivos soltaram Hiroshi, desfazendo-se em cinzas negras, e Yuki o agarrou pelo braço, puxando-o para o corredor enquanto a entidade se contorcia, asas quebradas de osso e penas podres se formando em suas costas, pingando um líquido negro que chiava ao tocar o chão.
Eles caíram juntos no corredor, o chão borbulhava sob seus pés, as paredes sangrando em riachos que formavam o selo do pássaro em chamas, pulsando com uma luz que parecia viva. O som de asas úmidas ecoava das escadas e do 304. Hiroshi agarrou o ombro de Yuki, o peito arfando, o olhar ainda nublado. — O que você fez?! — perguntou, a voz rouca.
— Usei um mantra — respondeu ela, ofegante, o veneno dos insetos queimando suas pernas. — Algo que minha avó me ensinou… afastei essa coisa. Mas não sei por quanto tempo.
Antes que Hiroshi pudesse responder, a entidade na porta do 304 soltou um último rugido, um som que rasgou o ar como metal retorcido. Então, como se sugada por um vácuo invisível, ela dissolveu-se em uma névoa negra que rastejou para dentro do apartamento, desaparecendo nas sombras do corredor interno. O silêncio caiu, pesado e opressivo, quebrado apenas pelo gotejar do líquido nas paredes, um som que lembrava sangue pingando de uma ferida aberta.
Hiroshi caiu de lado, os olhos revirando enquanto desmaiava, o corpo mole contra o chão borbulhante. Yuki se ajoelhou ao lado dele, os dedos trêmulos verificando seu pulso. Ele estava vivo, respirando em arquejos curtos, mas a entidade o tocara — não uma possessão completa, mas um veneno mental que o derrubara. — Hiroshi, aguenta aí — murmurou ela, o medo misturado a uma determinação que crescia. Ela sabia que o perigo não acabara. A entidade do térreo, libertada da caixa, ainda rastejava lá embaixo, mas a do 304 precisava ser enfrentada agora.
Yuki se levantou, a lanterna firme na mão, e entrou no apartamento, o ar quente e denso carregado de um fedor de enxofre e podridão doce. O chão estava coberto por poças ácidas que chiavam, soltando vapor que cheirava a morte líquida, e as paredes sangravam o símbolo do pássaro em chamas, pulsando com uma luz doentia. O som de asas úmidas vinha do quarto, baixo mas insistente. Ela avançou, o coração martelando, e abriu a porta do quarto com um empurrão, a madeira rangendo como um lamento.
O quarto era um caos de sombras vermelhas, o papel de parede rasgado revelando concreto manchado de vermelho e preto, como carne exposta. No canto, o guarda-roupa torto estava entreaberto, as portas pendendo como dentes quebrados. Yuki se aproximou, o feixe da lanterna tremendo em suas mãos, e viu algo dentro: uma caixa menor, de madeira polida, selada com tiras de tecido vermelho desbotado que escorriam um líquido escuro ao toque.
Ela a puxou com cuidado, o peso estranho e quente em suas mãos, e abriu a tampa, revelando uma estátua chinesa de pedra, não maior que seu antebraço. Era uma figura grotesca — um guerreiro com armadura rachada, o rosto metade humano, metade pássaro, o bico curvado como uma foice afiada e os olhos cavados cheios de uma crosta negra que pulsava. Ao redor da base, caracteres chineses estavam gravados, idênticos aos da caixa do térreo, brilhando com uma luz que não vinha da lanterna.
Um frio subiu por sua espinha, e o som de asas úmidas cresceu, vindo da estátua. Yuki sabia que essa era a fonte da entidade do 304 — uma segunda força maligna, ligada à do térreo, mas distinta, uma fome que se alimentava do sofrimento silencioso das mães que ali viveram. Ela precisava exorcizá-la agora. Sua avó a ensinara rituais budistas para proteção, e um exorcismo exigia intenção, fogo, e um selo contra o mal.
Ela vasculhou o quarto, encontrando uma lata enferrujada de tinta seca, as bordas afiadas como dentes. Pegou o isqueiro do bolso e arrancou um pedaço do tecido vermelho da caixa, o material quente e úmido contra seus dedos. Colocou a estátua no centro do quarto, traçando um círculo ao redor dela com a poeira do chão, imaginando-o como um mandala de contenção. Acendeu o tecido com o isqueiro, a fumaça subindo em espirais negras, e começou o Sutra do Lótus: — “Namu Myoho Renge Kyo…”
A cada repetição, ela jogava um punhado de poeira sobre a estátua, as palavras ecoando no ar vermelho. O mala de contas em seu bolso vibrou, e ela o enrolou em torno da lata, batendo com a lanterna para criar um som rítmico que cortava o silêncio profano. O ar no quarto ficou mais denso, o vermelho tremendo, e a estátua começou a rachar, linhas finas se espalhando pela pedra. A névoa negra retornou, formando a entidade de antes, mas Yuki não parou.
— “Namu Myoho Renge Kyo!” — gritou, batendo a lata com força, o som ressoando como um trovão sagrado. A fumaça do tecido subiu mais alto, envolvendo a entidade, e as contas do mala brilharam com uma luz suave, cortando o vermelho infernal. A entidade se contorceu, as asas desmoronando em pedaços de osso que se dissolviam em cinzas úmidas. Com um último rugido, ela implodiu, a névoa negra sendo sugada de volta para a estátua, que rachou completamente, partindo-se em fragmentos inertes que pingavam um líquido preto e viscoso.
O quarto ficou em silêncio, a luz vermelha piscando uma última vez antes de apagar, deixando apenas a escuridão e o eco do mantra. Yuki caiu de joelhos, o corpo tremendo com o veneno dos insetos e o peso do que acabara de fazer, a lanterna rolando no chão com um som oco.
Enquanto isso, Hiroshi estava preso em um sonho, o corpo desmaiado no corredor, mas a mente arrastada para um vazio vermelho que pulsava como um útero profano. Ele viu uma paisagem antiga, um vilarejo nas montanhas da China, sob um céu tingido de cinza e sangue, o século III a.C., o fim da dinastia Qin. Um artesão, as mãos calejadas e os olhos selvagens, esculpia a estátua numa caverna escondida, a pedra negra arrancada de um túmulo profanado, o ar cheirando a enxofre e morte fresca. Ele era um feiticeiro, consumido por uma vingança contra os senhores de guerra que massacraram sua família. Em sua raiva, ele profanou o túmulo de um antigo rei, roubando a pedra sagrada e invocando um yāo, um espírito de destruição, para vingar sua perda. Mas o yāo era mais do que ele esperava — uma semente de uma força extradimensional, uma entidade que existia além do tempo, esperando por uma porta para entrar no mundo humano. O artesão selou o yāo na estátua com seu próprio sangue, gravando seus gritos nos caracteres chineses, mas foi o primeiro a morrer, as entranhas arrancadas enquanto dormia, o espírito se alimentando de sua raiva antes de massacrar o vilarejo.
Sacerdotes budistas tentaram contê-lo, envolvendo a estátua em tecido vermelho encharcado de sangue sagrado e enterrando-a numa caixa lacrada, escondida num templo nas montanhas. Séculos depois, na era moderna, a estátua foi desenterrada por saqueadores, vendida em mercados negros, até parar no 304, onde se alimentou do desespero das mães que ali viveram, seus “acidentes” oferendas ao yāo, uma fome que atravessava o tempo.
Hiroshi acordou com um grito rouco, o corpo coberto de suor frio, os olhos arregalados enquanto Yuki se ajoelhava ao seu lado, ofegante, os fragmentos da estátua espalhados pelo quarto. — Yuki… eu vi… eu sei o que ela é — disse ele, a voz trêmula, as mãos agarrando o chão pegajoso.
— Acabei com essa — respondeu ela, apontando para os restos da estátua, a voz firme apesar do cansaço. — Mas a do térreo… a caixa… ainda tá lá. São duas entidades, Hiroshi. E a de baixo é pior.
Ele virou a cabeça, o movimento lento e pesado, e viu Yuki ajoelhada ao seu lado, o rosto pálido manchado de sangue e gosma verde dos insetos. — Yuki… — A voz de Hiroshi saiu rouca, um sussurro rasgado. — Não foi só um vilarejo Qin… era um rasgo no mundo. Eu vi o céu rachar, um céu cinza que sangrava vermelho. O artesão… ele abriu uma porta. Ele chamou algo… algo que já tava esperando, antes do tempo, antes de nós.
Yuki ouviu em silêncio, o peso das palavras dele caindo sobre ela. Ela sabia que ele não estava inventando — havia verdade naquela visão, uma verdade que ela sentia na vibração do ar, no pulsar do selo nas paredes. Mas antes que pudesse responder, o chão tremeu, um estremecimento profundo que subiu pelas fundações. O som de asas úmidas cresceu, vindo de todos os lados, das escadas, do próprio ar.
— A do térreo… — murmurou Yuki, os olhos arregalados enquanto se levantava, o corpo protestando com espasmos de dor. — Ela sentiu essa morrer. Tá vindo pra cá.
Hiroshi tentou se erguer, as pernas bambas cedendo sob ele, o sangue escorrendo dos cortes em seus tornozelos. — Então acaba com ela também! — gritou, a voz quebrando em desespero. — Usa esse mantra de novo, Yuki, antes que—
Ele foi cortado por um estrondo que veio de baixo, um som que rasgava a realidade. O corredor tremeu violentamente, as paredes rachando em linhas tortuosas que sangravam mais forte, o líquido vermelho escorrendo em cascatas que formavam poças no chão, poças que se moviam sozinhas, rastejando em direção ao 304. O selo do pássaro em chamas nas paredes brilhou com uma intensidade insana, as asas quebradas pulsando, e o ar ficou quente, sufocante, carregado de um fedor de enxofre e podridão.
E então ela veio, emergindo da poça de sangue no centro do corredor. Era uma entidade diferente da do 304, maior, mais grotesca, uma massa disforme que se erguia como uma montanha de carne podre e sombras líquidas. Seu corpo era um amálgama de restos — ossos humanos quebrados entrelaçados com penas negras que pingavam pus, asas quebradas que pulsavam com veias vermelhas que brilhavam como relâmpagos. A cabeça era uma cavidade sem olhos, apenas um buraco negro que sugava a luz, cercado por tentáculos de cabelos oleosos que se contorciam, cada um terminando em uma boca cheia de dentes serrilhados.
Hiroshi gritou, o som perdido no rugido que a entidade soltou, um som que rasgava a mente, carregado de palavras que ele sentia — “Você é meu… todos são meus…” Yuki avançou, o mala de contas enrolado em seu punho, o isqueiro aceso na outra mão, o tecido vermelho da caixa menor queimando enquanto ela recitava o Sutra do Lótus: — “Namu Myoho Renge Kyo…”
A cada palavra, ela jogava a fumaça negra do tecido em direção à entidade, as contas do mala brilhando com uma luz dourada que cortava o vermelho infernal. O chão tremia mais forte, as poças de sangue borbulhando, e a entidade recuou, os tentáculos de cabelo chicoteando o ar, cortando as paredes em sulcos profundos. Yuki bateu a lata enferrujada contra o chão, o som ecoando como um sino profano, cada golpe sincronizado com o mantra, e o ar ao redor dela vibrou, uma onda de energia que fazia os insetos explodirem em nuvens de gosma pútrida.
— “Namu Myoho Renge Kyo!” — gritou ela, a voz quebrando em um rugido primal. A luz dourada do mala cresceu, envolvendo-a como um escudo, e a entidade soltou um urro que fez o prédio inteiro estremecer, as vigas do teto rachando e caindo em pedaços que se dissolviam no ar. Os tentáculos de cabelo se contorceram, encolhendo-se, e a cavidade sem olhos pulsou, expelindo uma névoa negra que cheirava a morte estelar.
Mas ela não desistiu fácil. As asas se abriram mais, e por um momento o corredor inteiro pareceu se curvar, as paredes se esticando antes de rasgar, revelando um vazio vermelho além delas, o rasgo no mundo que Hiroshi vira. A entidade avançou, os tentáculos cravando-se em seu ombro, arrancando um grito enquanto o sangue jorrava, misturando-se ao líquido negro no chão.
Hiroshi rastejou até ela, o corpo quase cedendo. Ele agarrou o mala que caíra de sua mão, os dedos trêmulos enrolando as contas em seu pulso, e gritou as palavras que ouvira dela: — “Namu Myoho Renge Kyo!” Sua voz era fraca, mas carregada de uma força que ele não sabia que tinha.
O mantra combinado deles explodiu no ar como um trovão sagrado, a luz dourada das contas crescendo até cegar, cortando o vermelho infernal. A entidade recuou, as asas se desfazendo em fragmentos que caíam no chão e se dissolviam em pó negro, os tentáculos queimando em chamas invisíveis. A cavidade sem olhos pulsou uma última vez, um grito silencioso que rasgou suas mentes, antes de implodir, a massa disforme colapsando sobre si mesma em uma explosão de névoa negra que foi sugada para o chão, desaparecendo na poça de sangue.
O silêncio caiu, mas o prédio não estava acabado. As paredes começaram a tremer, um suspiro doentio, como se a energia do yāo, que o mantinha “vivo”, tivesse sido arrancada. O concreto rachado se desfazia, desmoronando em torrentes de pó fino, um cinza escuro que caía como areia. As poças de sangue e líquido negro evaporaram em nuvens de vapor pútrido, e o carpete derretido endureceu, rachando em pedaços que se desfaziam em barro seco. O teto desmoronou lentamente, vigas e gesso caindo em montes de pó, e o selo do pássaro em chamas apagou-se, as linhas sangrentas secando e desbotando até virarem cinzas.
Hiroshi e Yuki caíram de joelhos, exaustos, os corpos tremendo à beira do colapso. O sangue escorria do ombro de Yuki, e os cortes nos tornozelos de Hiroshi ardiam, o veneno dos insetos ainda rastejando em suas veias. Eles respiravam em arquejos rasgados, os pulmões queimando com o ar que agora cheirava a nada. O corredor inteiro estava se dissolvendo ao seu redor, as portas, as paredes, o próprio 304 desmoronando em pó e barro, como se o prédio estivesse apagando a si mesmo, levando o mal com ele.
O quarto onde a estátua fora destruída já não era um quarto — apenas um espaço vazio, o chão de concreto nu coberto por uma camada fina de cinzas. Os fragmentos da estátua haviam desaparecido, dissolvidos junto com o resto, e o silêncio era tão profundo que parecia engolir até o som de seus corações batendo. Hiroshi olhou para Yuki, o corpo mole contra o que restava da parede, agora pouco mais que um monte de barro seco.
— Acabou? — perguntou ele, a voz um fio quebrado.
Yuki respirou fundo, o peito subindo e descendo com dificuldade, e olhou para o corredor que desmoronava, as escadas ao fundo já reduzidas a um monte de pó cinzento que soprava para fora, revelando o céu escuro lá fora, um céu sem estrelas, mas limpo, como se o rasgo vermelho do sonho tivesse se fechado.
— Acabou aqui — disse ela, a voz rouca, carregada de uma exaustão que ia além do físico. — A do térreo… ela era o corpo. A do 304 era a mente. Destruímos as duas. Mas o que plantou elas… — Ela parou, os olhos fixos no vazio, como se ainda pudesse ver as asas de vazio girando em um abismo distante.
— Isso não morreu. Só voltou pra onde tava esperando. Hiroshi deixou a cabeça cair contra o chão, o pó frio contra a testa, e riu, um som seco e vazio que ecoou no espaço que desaparecia. — Então a gente quase morreu… por um pedaço de algo maior? — Ele fechou os olhos, a intuição ainda queimando em seu peito, uma certeza que não podia explicar, mas que o fazia tremer. — Eu senti, Yuki. Lá no sonho. Não era só um yāo. Era um fragmento… uma lasca de algo que tá olhando pra cá, esperando a próxima porta. Yuki não respondeu, os olhos fixos no monte de cinzas que fora o 304, o vento levando o pó para fora em espirais lentas e silenciosas.
O prédio inteiro estava quase gone, as paredes externas desmoronando em montes de barro e areia que se espalhavam pelo pátio, o concreto nu das fundações exposto como ossos de um cadáver antigo. Eles estavam no que restava do terceiro andar, um platô aberto ao céu, o ar frio da noite cortando suas peles ensanguentadas e suadas. Ela finalmente falou, a voz baixa, quase um sussurro: — Seja o que for, não vai abrir outra porta hoje. A gente fechou essa. Mas você tá certo… tá esperando. Sempre esteve.
Eles ficaram ali, deitados no chão que se desfazia, os corpos exaustos demais para se mover, os corações batendo em um ritmo lento e irregular, como se ainda lutassem contra o peso do que enfrentaram. O som do vento era o único ruído, carregando as últimas cinzas do Maniwa Heights para a escuridão, apagando o prédio como se nunca tivesse existido, um túmulo vazio engolido pela noite.
Hiroshi sentiu a intuição pulsar uma última vez, um eco do vermelho infinito, das asas de vazio, do abismo que os observava, mas ele a deixou ir, confiando que, por agora, estavam vivos. Exaustos, quebrados, mas vivos.
E o silêncio os engoliu.