Prólogo

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Nas sombras insondáveis do cosmos, onde o silêncio se erguia como um monólito de mármore celestial, polido pela mão invisível da eternidade, dois luminares incorpóreos se enfrentavam. Não eram homens, pois nenhum coração mortal, tecido de sangue e fragilidade, poderia suportar o fardo daquele embate de ideias. Tampouco eram deuses, pois em suas essências tremulava ainda o espectro da dúvida — e onde a dúvida sussurra, a divindade, em sua plenitude absoluta, hesita e se retrai.

O primeiro luminar, cuja presença parecia entrelaçar o espaço com filamentos de luz gélida e pura, falou com uma voz que ressoava como os sinos de uma catedral perdida em eras imemoriais, cada nota ecoando nos confins do vazio:

— A origem do mundo? Ela está inscrita nos números. Não nos números vulgares que os homens rabiscam em suas contas mesquinhas, mas nas harmonias secretas que ordenam o caos primordial. Em cada soma perfeita, onde os fragmentos se unem em equilíbrio divino, em cada curva da espiral dourada, que desenha proporções além do alcance da mente, repousa a assinatura do Absoluto. Antes do tempo, antes da luz, os números cantavam em silêncio, traçando as leis que sustentam o ser e o fazem perdurar.

O segundo luminar, uma entidade de contornos aguçados como a lâmina da razão em seu ápice, respondeu com uma voz cortante, afiada como o vento que erode montanhas em eras sem fim:

— Números? Meros reflexos dos sentidos, frágeis como a poeira que o tempo varre. Eles nascem na corrente do devir e com ela se desfazem. São servos, não senhores. Se queres o princípio, olha para a vontade. O mundo não é uma dança serena de equações; é um rugido visceral, um desejo ardente que rasga o véu do nada. Antes de qualquer lei, antes de qualquer forma, havia o querer eterno — a chama que não se explica, mas incendeia e dá vida.

O confronto se desenrolava como uma tempestade de pensamentos, entretecendo teorias como vinhas selvagens que crescem emaranhadas, sufocando o chão com sua vitalidade indomada. O primeiro erguia sua visão como uma cidadela de cristal: as leis matemáticas, afirmava, eram o fundamento primordial, anteriores à própria luz, eternas em sua imutabilidade. Ele apontava para o giro preciso dos astros, para a simetria oculta nas formas da natureza, para o pulsar rítmico do cosmos, como se cada movimento fosse um testemunho irrefutável de um plano traçado em números incorruptíveis.

O segundo, com um brilho febril que desafiava a ordem, retrucava que as leis eram apenas ecos tardios de uma força mais profunda. A vontade, insistia, era a centelha primeira — não um cálculo frio, mas um ímpeto bruto e indizível, um ato de criação que não se curva a compassos ou réguas. Para ele, o universo não era uma engrenagem silenciosa, mas uma sinfonia de paixões, onde o caos e a ordem se entrelaçavam em uma dança tensa e vital.

— E os milagres? — perguntou o primeiro, sua voz carregada de um desafio sutil, como o som de um sino que ressoa mesmo após o toque final se dissipar. — Como explicas os instantes em que as leis se dobram, em que o impossível trespassa o véu do mundo e o tecido da realidade parece ceder ao inexplicável?

O segundo sorriu, um sorriso que oscilava entre a certeza absoluta e a ironia enigmática, dançando na fronteira entre o saber e o desconhecido:

— O que chamas de milagre é apenas a lógica do invisível, um lampejo do que escapa aos teus números. A ciência, com sua visão estreita, traça linhas retas e proclama verdades parciais. Mas a transcendência enxerga o labirinto — curvas, abismos, dobras onde as leis não se rompem, mas se desvelam como sombras de uma ordem mais vasta, insondável aos teus cálculos.

O diálogo avançava como uma maré inexorável, cujas ondas arrastavam à tona tesouros e ruínas de pensamentos profundos. Discutiam a matéria primordial, um abismo informe onde o ser e o não-ser se confundiam em um abraço indistinto; o eterno retorno, um ciclo em que o tempo se curva sobre si mesmo como uma serpente que morde a própria cauda; e até um mundo forjado nos sonhos de uma consciência cósmica, onde as leis do universo eram reflexos de anseios inconfessáveis. Cada hipótese se erguia como uma catedral de ideias, imponente em sua ambição, mas insuficiente, como se o próprio cosmos guardasse um segredo que nenhum intelecto — finito ou eterno — pudesse capturar em sua totalidade.

Foi então que uma terceira voz irrompeu, não com a força de um trovão ou a agudeza de uma lâmina, mas com a suavidade de folhas secas que dançam ao vento em um crepúsculo outonal. Era uma presença quase imperceptível, mas impregnada de uma gravidade que silenciava o tumulto sem esforço:

— Não percebem? O mundo não começou com leis, nem com desejo, mas com um ato supremo de ser, ordenado por uma causa primeira que transcende ambos. Não são os números, em sua fria abstração, nem a vontade, em seu ardor cego, que dão origem ao que é. O princípio reside naquilo que é por si mesmo, o Ser Subsistente em Si, cuja essência é existir. Antes de toda forma, antes de todo movimento, Ele é. E o mundo, com suas leis e seus anseios, não é senão o reflexo de Sua inteligência eterna, movida por uma bondade que deseja compartilhar o ser.

Os dois luminares calaram-se, suas vozes ressoantes e cortantes dissolvidas como névoa ao nascer do sol. O terceiro prosseguiu, sua fala tecendo um véu de mistério e clareza, como um rio que corre profundo e sereno:

— Os números que exaltas, ó primeiro, são belos e verdadeiros, mas não são o princípio; são a ordem impressa pelo Intelecto Divino, que dispõe todas as coisas segundo medida, número e peso. E a vontade que defendes, ó segundo, é poderosa e real, mas não é a fonte; é o apetite que move as criaturas ao seu fim, mas só encontra repouso no Bem Supremo que a atrai. O milagre que questionais não é ruptura, mas participação — a manifestação da potência divina que sustenta o ser em cada instante. Pois o mundo não é um acidente de forças cegas, nem um capricho de desejos errantes; é um efeito contingente, chamado à existência por Aquele que é necessário, cuja pergunta primeira não é ‘por quê?’ ou ‘quem?’, mas ‘que o ser seja’. E assim foi.

A voz do terceiro luminar cresceu, não em volume, mas em profundidade, como o som de um órgão que ressoa nas profundezas de uma basílica, enchendo o espaço com uma harmonia que transcende o entendimento:

— Este cosmos, com seus números e suas vontades, é um espelho imperfeito do Verbo eterno, pelo qual todas as coisas foram feitas. Nele, o real e o impossível não são contradições, mas graus de participação no Ser que tudo abarca. E esse Ser, em Sua simplicidade infinita, permanece além de nossas disputas, pois não é compreendido por nós — nós é que somos compreendidos por Ele. O Infinito, como o chamais, não é um enigma a ser desvendado, mas um fim a ser buscado, onde a razão encontra seu repouso na contemplação e o coração seu gozo na união. Assim, o silêncio retorna, não como vazio, mas como plenitude, e o mármore celestial se torna o trono d’Aquele que é, foi e sempre será.

Os luminares não responderam. O debate cessou, não por exaustão, mas por reverência. O Infinito pairava, agora não como um nome vago, mas como o reflexo de uma verdade eterna, misteriosa em sua clareza, completa em sua simplicidade — o fundamento de um universo que existe porque foi amado por um Ser que é o Amor mesmo.

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