Na segunda-feira de manhã, o sol brilhava alto no céu claro de Tomita, uma pequena cidade no coração da província de Okayama, Japão. Hiroshi caminhava pelas ruas elegantes de um distrito comercial em ascensão, um contraste gritante com o restante da região, conhecido por seus templos antigos e campos de arroz que se perdiam no horizonte. Tomita era um lugar de transição: ao norte, as montanhas de Chugoku se erguiam como guardiãs silenciosas, suas encostas cobertas de pinheiros escuros que sussurravam ao vento; ao sul, o rio Asahi cortava a terra, suas águas refletindo o céu em tons de azul e dourado. A cidade em si parecia dividida entre o passado e o presente. Casas tradicionais de telhados curvos e paredes de madeira conviviam com prédios envidraçados e placas luminosas anunciando cafés modernos e lojas de conveniência.
O distrito comercial onde Hiroshi caminhava era o símbolo dessa modernização. As ruas, pavimentadas com asfalto novo, eram ladeadas por postes de luz estilizados e árvores jovens plantadas em fileiras perfeitas, suas folhas ainda frágeis tremendo na brisa matinal. O som de buzinas distantes misturava-se ao canto ocasional de um pássaro, enquanto trabalhadores em ternos impecáveis cruzavam o caminho de estudantes de bicicleta, suas mochilas balançando nas costas.
Havia um cheiro no ar — uma combinação sutil de café fresco vindo de uma cafeteria próxima e o aroma terroso que subia do solo úmido após a chuva leve da noite anterior. Era um lugar vivo, mas com um pé fincado na calma rural que Okayama carregava como herança.
Hiroshi, no entanto, mal prestava atenção à beleza ao seu redor. Seus pensamentos estavam em outro lugar, girando em torno de uma única pergunta que o atormentava desde o fim de semana: Como cheguei a isso? Investigando fantasmas? Ele ainda podia sentir o peso das palavras de Kazuo. Ajustou a mochila surrada nos ombros, sentindo o calor do sol nas costas, e ergueu os olhos para o prédio à sua frente.
O edifício onde Yuki trabalhava era uma anomalia em Tomita. Moderno e sofisticado, com cinco andares de vidro espelhado que refletiam o céu e as montanhas distantes, parecia mais um escritório corporativo do que o quartel-general de alguém que caçava espíritos. A fachada era impecável: linhas retas, janelas amplas e uma entrada automática de portas duplas que zumbiam suavemente ao se abrir. Uma placa discreta ao lado da porta dizia apenas “Nakamura Ghost Search Center” — gravado em letras pretas sobre fundo branco, um nome que soava quase clínico, desprovido de qualquer misticismo.
Ele imaginara algo bem diferente: talvez uma casa velha com telhado torto, lanternas de papel penduradas e um ar de mistério gótico. Não isso. Não um lugar que poderia facilmente abrigar advogados ou contadores.
Cruzando as portas automáticas, ele entrou no saguão. O ar condicionado o envolveu como uma brisa fria, um alívio bem-vindo após a caminhada sob o sol. O espaço era pequeno, mas elegante: o chão de mármore claro refletia a luz suave que entrava pelas janelas, e uma recepcionista jovem, com fones de ouvido brancos, digitava em um computador atrás de um balcão baixo. Ela ergueu os olhos por um segundo, acenou com a cabeça em reconhecimento e voltou ao trabalho, como se a presença dele fosse parte da rotina. Uma música ambiente flutuava no ar, tão leve que mal se percebia, acompanhada por um aroma sutil de incenso que parecia vir de lugar nenhum. Hiroshi olhou ao redor, notando um vaso com uma planta ornamental — um bonsai bem cuidado — e o elevador de portas cromadas ao fundo. Tudo parecia… normal demais.
— Isso é um escritório de caça-fantasmas ou uma filial de banco? — pensou, apertando o botão do elevador. As portas se abriram com um ding discreto, e ele subiu até o terceiro andar, onde Yuki o esperava.
Ao chegar ao corredor, encontrou a porta 305 entreaberta. Empurrou-a com hesitação, e o interior do escritório o surpreendeu ainda mais. Era um espaço organizado, mas cheio de contrastes. À esquerda, uma mesa de vidro sustentava um laptop apagado, um monitor extra e uma pilha de papéis perfeitamente alinhados. À direita, uma prateleira exibia uma coleção eclética: cristais brutos e polidos, alguns brilhando sob a luz que entrava pela janela, ao lado de pequenas estatuetas de madeira representando divindades budistas — Kannon, talvez, ou Jizo, ele não sabia ao certo. Em um canto, um altar minúsculo com flores secas e um prato de cinzas de incenso soltava aquele aroma que ele sentira no saguão, agora mais forte, misturado ao cheiro metálico dos equipamentos eletrônicos espalhados pela mesa.
Yuki estava de pé, de costas para ele, ajustando um dispositivo que parecia um termômetro digital com um visor iluminado. Vestia uma blusa preta simples e jeans escuros, o cabelo liso descia um pouco mais abaixo dos ombros e tinha uma cor única, mas que não parecia ser artificial. Não havia nada nela que gritasse “mística” — até ela se virar e fixar nele aqueles olhos azuis intensos, cheios de uma calma que o deixava desconfortável.
— Você está atrasado — disse ela, sem rodeios, cruzando os braços.
Hiroshi deixou a mochila deslizar até o chão com um baque úmido. — Desculpa, não acordei planejando caçar fantasmas. Ainda tô tentando engolir essa loucura.
Yuki suspirou, um som curto e afiado, e voltou ao aparelho. — Isso não é um jogo, Hiroshi. Temos um caso em Maniwa hoje. Apartamento 304. Dizem que o condomínio inteiro tá amaldiçoado e que tudo começou no 304.
— Amaldiçoado? — Ele deu um riso seco, quase engasgando. — Claro, porque é sempre culpa dos espíritos.
— Não espero que confie em minhas palavras — retrucou ela, pegando um medidor de campos eletromagnéticos que piscava como um coração doente. — Quero que veja com seus próprios olhos. Terceiro andar, prédio velho. Mães que moraram lá morreram em acidentes que ninguém explica. As famílias estão desesperadas. O lugar todo foi isolado e o condomínio interditado.
Hiroshi inclinou a cabeça, o sarcasmo murchando. — E você faz o quê? Aponta esses brinquedos pra as paredes e espera um susto?
Ela o encarou, os olhos estreitos como lâminas. — Eu investigo. Meço o que tá escondido — temperatura, eletricidade, sons. E, se precisar, faço rituais pra limpar a sujeira.
— Como na escola velha? — perguntou ele, as lembranças daquele caso — sombras dançando, ruídos que o fizeram pular — ainda rastejando em sua mente.
Ela assentiu, arrumando os equipamentos numa mochila preta reforçada. — Exato. Aquilo tá resolvido. Não era fantasma.
— Mas eu vi coisas, Yuki — insistiu ele, a voz mais firme. — Sombras, barulhos… parecia vivo.
— Monóxido de carbono — disse ela, fria como gelo. — Vazamento na ventilação. Alucinações. Os ruídos eram ratos no telhado. Caso morto.
Ele bufou, o alívio lutando com a frustração. — Então eu quase virei carniça por gás e ratos? Ótima estreia.
Yuki deu um sorriso fino, quase cruel. — Nem tudo é tão limpo, Hiroshi. O que parece simples às vezes é só a casca de algo pior.
Ele hesitou, o peso das palavras dela cravando-se fundo. Pegou a mochila do chão. — Tá, Maniwa então. Mas se for outro vazamento, quero um aumento.
Ela riu baixo, um som que cortou o ar como vidro quebrando, e apontou para a porta. — Vamos ver se você ainda tem estômago pra pedir isso depois.
A viagem até Maniwa foi tranquila. O carro de Yuki zumbia suavemente pelas estradas sinuosas, um som baixo e reconfortante que parecia embalar o caminho. Às margens, os arrozais se estendiam como tapetes de um verde suave, brilhando sob a luz morna do sol da manhã, com reflexos dourados dançando nas folhas. O céu era um azul sereno, salpicado por nuvens leves que flutuavam preguiçosas sobre as montanhas ao longe, cujos contornos suaves pareciam abraçar a paisagem com calma. Hiroshi encostou os dedos no vidro fresco da janela, sentindo a brisa que entrava pela fresta, e o silêncio entre ele e Yuki era leve, como uma conversa não dita, cheia de cumplicidade.
O Maniwa Heights surgiu na curva da estrada como um titã de luxo, projetado para ser a joia da elite urbana. Seus nove andares, finalizados há apenas dois meses, deveriam reluzir com uma fachada de vidro fumê que capturava o brilho da baía e detalhes em aço polido que refletiam o céu. Cada andar abrigava dois apartamentos espaçosos, verdadeiros palácios urbanos com pisos de mármore italiano, sistemas de automação que controlavam luzes, persianas e climatização com um toque, e janelas panorâmicas que prometiam vistas ininterruptas do horizonte. O prédio era um manifesto de sustentabilidade: painéis solares cobriam a cobertura, alimentando desde o estacionamento coberto, equipado com estações de carregamento para carros elétricos, até o lounge privativo no topo, com bar de coquetéis artesanais e uma piscina de borda infinita. Jardins zen, desenhados por paisagistas de Kyoto, cercavam a entrada, com pedras polidas e cerejeiras que deveriam florescer em perfeita harmonia. Um sistema de concierge 24 horas e uma academia com equipamentos de última geração completavam o sonho de opulência.
Mas algo estava profundamente errado. As janelas, antes imaculadas, estavam embaçadas, algumas rachadas como se golpeadas por mãos invisíveis. Os jardins, agora um emaranhado de ervas daninhas e trepadeiras selvagens, pareciam engolir o concreto, suas raízes quebrando o pavimento em fissuras tortuosas. A estrutura, que deveria exalar modernidade, parecia envelhecida, como se décadas de abandono a tivessem corroído. O ar ao redor era pesado, carregado com um cheiro de umidade mofada e um toque metálico, como ferrugem misturada a algo orgânico, algo que fazia a pele arrepiar sem explicação. Um zumbido baixo, quase imperceptível, vibrava no vento, como um lamento preso no próprio tecido do lugar.
Hiroshi desceu do carro, o vento frio cortando sua jaqueta leve. Seus olhos rastrearam sulcos profundos no pavimento da entrada, marcas longas e irregulares, como se garras tivessem rastejado até o saguão. Uma placa de metal, outrora brilhante, balançava torta em seu suporte, as palavras “Maniwa Heights” gravadas em letras elegantes, agora tortas e pingando uma tinta preta que escorria como sangue fresco, manchando o chão. Ele franziu a testa, a lógica tentando explicar o que via.
— Isso é… recente? — perguntou, apontando para a placa, a voz carregada de ceticismo. — Como uma placa nova fica assim em dois meses?
Yuki saiu do carro, a mochila pendurada no ombro, os olhos fixos no prédio. Desde o momento em que chegaram, uma tensão a envolvia, uma sensação de ser observada por algo que não pertencia a este mundo. O ar parecia mais denso, como se carregasse um peso invisível que pressionava seus ombros, e o cheiro acre de podridão misturado ao metálico a fazia sentir um frio que subia pela espinha. Ela tentou esconder o desconforto, mas sua voz saiu tensa, quase cortante.
— Chegamos — disse, quase um sussurro, engolido pelo zumbido do vento. — O nono andar. Foi lá que as coisas… aconteceram.
Hiroshi tentou aliviar a tensão, seu tom leve forçado. — Coisas? Tipo o quê? Festas barulhentas demais? Vizinhos tocando música alta?
Yuki não sorriu, seus olhos escuros ainda fixos na estrutura, a expressão endurecida por uma inquietação que ela não conseguia nomear. — Arranhões nas paredes. Sussurros que não paravam, mesmo com as luzes acesas. Algo que as famílias sentiram, algo que as matou.
Hiroshi engoliu em seco, o riso preso na garganta. — Ratos, então? Pragas em prédios novos não são tão raras.
— Não ratos — respondeu ela, já caminhando para a entrada, os passos firmes, mas carregados de cautela, como se temesse que o chão cedesse sob seus pés. — Algo que falava com os moradores à noite, em vozes que não eram humanas.
O saguão era um túmulo de opulência morta. O chão de mármore, projetado para refletir lustres de cristal, estava coberto por uma camada grossa de poeira cinzenta, rachado em linhas que pareciam pulsar sob a luz fraca. Janelas altas, agora embaçadas e trincadas, filtravam uma luz pálida do dia, lançando sombras tortuosas que pareciam se mover quando não olhadas diretamente. Elevadores de aço escovado, equipados com telas sensíveis ao toque, estavam parados, as portas entreabertas revelando poços escuros que exalavam um odor acre de enxofre misturado a podridão. Fios elétricos expostos pendiam do teto, balançando com uma corrente de ar que sussurrava, como vozes abafadas ecoando em um corredor vazio. O ar cheirava a mofo, urina velha e algo doce, como frutas apodrecendo sob o sol. Hiroshi sentiu um arrepio subir pela espinha, seus instintos gritando para fugir, mas sua mente lógica tentou racionalizar.
— Parece que esse lugar foi abandonado há décadas — murmurou, a voz rouca, ecoando no espaço cavernoso. — Dois meses? Impossível. Deve ter sido um erro de construção, talvez infiltrações.
Yuki assentiu, mas seus olhos varriam o saguão com uma intensidade que traía o desconforto crescente. O peso no ar parecia aumentar, uma pressão que fazia seu peito apertar, e as sombras nas janelas pareciam dançar, como se algo as movesse de dentro. Ela ajustou a mochila, os dedos roçando o tecido como se buscasse segurança, e falou com uma voz firme, mas carregada de tensão. — Foi construído e ocupado há dois meses. Algo aconteceu aqui, algo que envelheceu este lugar antes do tempo. Não é só infiltração, é como se tudo tivesse apodrecido de dentro pra fora.
Subiram as escadas, cada degrau de concreto rangendo como ossos quebrando sob o peso. A escadaria, antes revestida com corrimãos de aço e tapetes de lã importada, estava coberta por uma crosta úmida, o corrimão pegajoso, como se coberto por uma substância viva que pulsava levemente. O ar ficava mais frio a cada andar, um frio úmido que se agarrava à pele, trazendo um cheiro de ferrugem e terra molhada. Yuki sentia o peso da presença invisível crescer, uma sensação de ser observada que fazia seus músculos se contraírem, e o som dos degraus rangendo parecia ecoar dentro de sua mente, como um aviso. No nono andar, o corredor era uma garganta estreita, as paredes marcadas por arranhões profundos que escorriam uma umidade negra, brilhante como petróleo. As portas dos dois apartamentos estavam trancadas, suas superfícies de madeira entalhada agora lascadas, como caixões selados por mãos desesperadas.
Yuki empurrou a porta do apartamento à esquerda, que rangeu com um gemido longo, quase humano, revelando um espaço que já foi um santuário de luxo. Sofás de couro, antes impecáveis, estavam rasgados, o estofado sangrando espuma amarela. Cortinas de seda pendiam como carne esfolada, filtrando a luz em feixes pálidos que iluminavam poeira suspensa, girando como partículas em um líquido vivo. Uma mesa de jantar de carvalho estava tombada, as pernas quebradas, marcada por círculos de copos que pareciam olhos cegos. O ar era denso, fétido, com um cheiro metálico de sangue seco misturado a madeira podre. Yuki parou na entrada, o coração batendo forte, a sensação de estar sendo vigiada intensificando-se a cada segundo. As sombras nas paredes pareciam se alongar, e o cheiro acre a fazia sentir náuseas, um pressentimento que ela não conseguia ignorar.
Hiroshi ficou na entrada, o estômago revirando, sua mente lutando para encontrar uma explicação racional. — Então é aqui que você caça seus fantasmas? — perguntou, tentando soar leve, mas a voz tremia. — Não parece assombrado… parece mais um lugar que morreu e esqueceu de cair.
Yuki virou-se, os olhos brilhando na penumbra com uma intensidade fria, a tensão em seu rosto evidente. — É… a primeira vez que vejo um lugar assim. — Ela hesitou, o peso da atmosfera pressionando-a, e acrescentou: — Algo aqui tá vivo, Hiroshi. Não sei o que é, mas sinto isso.
— Primeira vez? — Ele deu um sorriso nervoso, o som morrendo rápido. — E por onde começamos?
— Temperatura — respondeu ela, tirando um termômetro digital da mochila, o visor acendendo com uma luz fraca. — Variações podem indicar atividade. Coisas que não explicamos com ‘defeitos na estrutura’.
Hiroshi segurou o aparelho que ela lhe entregou, notando a leitura no visor. — Tá um frio danado aqui. Não deveria estar abafado, trancado assim?
— Boa observação — disse Yuki, anotando os números num caderno pequeno, a mão firme apesar do tremor interno. — Quinze graus aqui, vinte e cinco lá fora. Não é normal pra um lugar fechado.
Eles começaram a explorar, os passos ecoando no chão pegajoso. Hiroshi sentia olhos invisíveis, uma pressão que fazia seus ombros encolherem. Sombras pareciam se mover nas bordas da visão, desaparecendo quando ele virava a cabeça. O silêncio era opressivo, quebrado apenas pelo ranger ocasional do prédio, como se a estrutura estivesse viva, respirando. De repente, um arranhar baixo veio de trás de um sofá rasgado, insistente, como unhas rasgando tecido. Hiroshi congelou, o coração batendo contra as costelas.
— Você ouviu isso? — perguntou, a voz baixa, quase um sussurro.
Yuki apontou o termômetro para o canto, os números caindo no visor. — Ouvi. A temperatura caiu dois graus. Não é um rato.
— Então o que é? — perguntou ele, ajoelhando-se para espiar atrás do móvel. Nada além de poeira grossa e marcas fundas no chão, sulcos que pareciam feitos por dedos humanos, não garras. Ele se levantou, o pulso acelerado. — Parou quando cheguei perto. Ratos não fazem isso.
— Não fazem — disse Yuki, o tom afiado, os olhos fixos no canto, a tensão em seu rosto crescendo. — Quer ajudar a descobrir o que é?
— Claro — respondeu ele, a curiosidade vencendo o medo. Ela lhe entregou um gravador pequeno, o plástico frio contra a palma suada.
— Aperte o botão vermelho e grava enquanto anda pela sala — explicou. — Se tiver algo aqui, pode se manifestar no áudio. Vamos ouvir depois.
Hiroshi segurou o aparelho, tentando aliviar a tensão. — Me sinto num programa de caça-fantasmas. Só falta a música dramática.
Yuki deu um riso curto, quase seco. — Guarda o drama pra depois. Por enquanto, só grava.
Ele começou a andar pela sala, o gravador emitindo um clique suave enquanto capturava o silêncio sufocante. A luz do fim da tarde diminuía, as sombras se alongando pelas paredes, esticando-se como dedos famintos. De repente, um som baixo veio do corredor interno do apartamento — um arrastar lento, como algo pesado sendo puxado pelo carpete. Hiroshi parou, apontando com o queixo.
— Tá ouvindo isso?
Yuki pegou a lanterna da mochila, o feixe cortando a penumbra, sua respiração mais pesada, como se o peso do ambiente a sufocasse. — Sim. Parece que vem do corredor. Vamos checar?
— Tô dentro — disse ele, os pés inquietos, seguindo-a com o gravador ainda na mão.
O corredor interno era uma tripa úmida, as paredes manchadas de umidade negra que escorria como lágrimas gordurosas, o carpete cinza agarrando os sapatos como lama viva. Uma luz fraca se infiltrava por uma janela quebrada no fim do corredor, lançando sombras que pareciam rastejar. Hiroshi tocou uma caixa de plástico amarelada na parede, um interruptor antigo que parecia deslocado, frio e inerte sob seus dedos.
— Sem energia, né? — murmurou, mais para si mesmo. — Então o que tá fazendo esse barulho?
— Não é fiação — respondeu Yuki, o feixe da lanterna varrendo o espaço, os olhos arregalados, o desconforto evidente. — Pode ser algo se movendo. Ou o prédio ‘falando’. Esses lugares guardam ecos que não explicamos.
Eles voltaram à sala principal, o silêncio no apartamento mais pesado, como se o ar tivesse engolido o som. Estavam medindo há poucos minutos quando uma batida baixa veio do quarto ao fundo — um som abafado, como um punho batendo contra madeira. Hiroshi parou, o gravador ainda na mão.
— Outra vez. Tá ouvindo?
Yuki apontou o medidor para o quarto, os números caindo lentamente, o rosto tenso, como se o som a puxasse para um lugar sombrio. — Sim. Vem dali. Vamos devagar.
Trocaram um olhar rápido, e Hiroshi sentiu um frio subir pela espinha — não medo puro, mas uma curiosidade que começava a se misturar com inquietação.
— Canos, talvez? — sugeriu, tentando se agarrar a uma explicação racional.
— Talvez — respondeu ela, liderando o caminho com passos cautelosos, o corpo rígido, como se esperasse um ataque a qualquer momento.
O quarto era pequeno e fétido, o colchão jogado no chão coberto por manchas escuras que cheiravam a bile, uma cômoda torta rangendo sozinha, e uma cortina rasgada pendendo como pele arrancada. Yuki tocou a parede, os dedos sentindo uma vibração sutil, quente, como se algo respirasse do outro lado, o coração dela disparando, o pressentimento de algo terrível crescendo.
— Pode ser canos — disse, batendo na superfície com os nós dos dedos. O som parou de repente, mas o silêncio que caiu era pior — denso, vivo, esperando.
Hiroshi forçou um sorriso. — Você tem um jeito com paredes, hein?
Yuki não riu, os olhos fixos na parede, onde uma rachadura fina começou a se formar, escorrendo uma gosma preta que fedia a carne podre, o ar ao redor dela carregado de uma energia que a fazia estremecer.
— Ou ela tem um jeito comigo — respondeu, a voz baixa, quase um murmúrio.
— Acha que… sabe que a gente tá aqui? — perguntou ele, o coração batendo mais rápido.
— Talvez — disse ela, os olhos brilhando com uma certeza que o fez engolir em seco. — Vamos continuar.
O silêncio durou pouco. Um estalo seco veio do teto, como madeira cedendo sob pressão, e Hiroshi olhou para cima, vendo uma rachadura se abrir, longa e tortuosa, pingando uma substância negra que chiava ao tocar o chão.
— Isso tá ficando pior — disse, a voz carregada de tensão.
Yuki hesitou, observando a rachadura crescer, as bordas pulsando como veias, o ar ao redor dela tremendo com uma presença que ela não podia nomear, mas que a fazia sentir como se estivesse sendo sufocada. — A temperatura tá caindo mais rápido agora. Algo tá se movendo dentro do apartamento. Preciso checar o quarto ao fundo, onde o som tá mais forte.
— Eu vou com você — disse Hiroshi, dando um passo à frente, o corpo tenso.
— Não — cortou ela, firme, entregando-lhe o medidor e um rádio pequeno, o plástico frio contra sua palma. — Fica aqui na sala. Monitora a temperatura e grava qualquer som. Se algo tá se movendo, preciso que você registre enquanto eu investigo.
Hiroshi pegou os aparelhos, girando o rádio com um sorriso torto que mascarava o nó no estômago. — Então eu sou a âncora, e você a exploradora? Tá, mas volta logo.
— Volto — respondeu ela, pegando a lanterna e sumindo pelo corredor interno, o feixe de luz engolido pela escuridão como um fio de esperança cortado.
Hiroshi ficou sozinho, o gravador zumbindo baixo na mesa de centro, um som que parecia o último suspiro de algo vivo. Ele apontou o medidor para os cantos da sala, os números oscilando como um batimento cardíaco irregular, o ar ficando mais frio, mais pesado. As sombras pareciam dançar quando ele não olhava diretamente, e o silêncio era tão denso que parecia pressionar seus tímpanos.
— Certo, tem o que temer — murmurou, os olhos nas sombras que pareciam se mexer. — Estou sozinho aqui.
De repente, o ar mudou, um calor opressivo substituindo o frio, e o cheiro de podridão intensificou-se, misturado a algo metálico, como ferro derretido. O gravador começou a girar sozinho, a fita desenrolando-se em fitas negras que rastejavam pelo chão, chiando com vozes gorgolejantes, como se falassem debaixo d’água. O sofá rasgou-se por dentro, o estofado abrindo como pele cortada, revelando uma massa cinzenta e pulsante, cheia de veias negras que se contorciam, exsudando um líquido amarelo que fedia a bile. Dela emergiu uma forma grotesca, flutuando a centímetros do chão, o corpo encurvado coberto por uma pele rachada como argila seca, esticada sobre ossos que estalavam. Os braços eram longos, terminando em garras curvas com unhas pingando pus viscoso, e a cabeça pendia em um ângulo impossível, os olhos buracos fundos brilhando com um amarelo pútrido que sugava a luz. A boca, um corte de orelha a orelha, escorria saliva negra que queimava o chão, formando sulcos fumegantes.
— Isso… não é possível — disse Hiroshi, recuando até bater na parede, o impacto arrancando um gemido da madeira podre. Cabelos oleosos brotaram do chão, enrolando-se em seus tornozelos como arames vivos, cortando a pele em linhas sangrentas. As paredes sangraram, um líquido vermelho escorrendo em riachos que formavam um selo circular — um pássaro em chamas, as asas quebradas pulsando com uma luz pútrida.
Uma voz ecoou em sua mente, não falada, mas sentida como agulhas no cérebro: Você agora é meu… Hiroshi caiu de joelhos, a visão escurecendo com imagens de um vermelho infinito, uma presença fria e astuta tentando enraizar-se em sua mente. A estatueta que ele não viu, escondida entre os destroços da sala principal — um pássaro de guerra esculpido em madeira enegrecida, com olhos de ônix que pulsavam com um brilho maligno —, vibrava no chão, suas faixas vermelhas rasgadas pingando um líquido viscoso que chiava ao tocar a madeira podre. Seu corpo amoleceu, e ele desmaiou, o rádio caindo de sua mão com um estalo seco, enquanto a entidade da estatueta o envolvia em um abraço invisível e gélido.
No quarto ao fundo, Yuki enfrentava sua própria batalha. O ar era denso, carregado com um fedor de podridão e enxofre que arranhava a garganta, e as paredes, cobertas por arranhões profundos, pareciam pulsar com uma energia que ela não podia compreender. No canto, um armário de madeira entalhada, outrora elegante, estava torto, as portas entreabertas como dentes quebrados. Ela se aproximou, o pressentimento de algo terrível crescendo, e viu algo dentro: uma segunda estatueta de madeira, menor, também representando um guerreiro-pássaro, mas com asas quebradas e um bico curvo que parecia dilacerado, como se tivesse sido arrancado à força. Caracteres chineses arcaicos, gravados na base, brilhavam com uma luz que não vinha da lanterna, e faixas de tecido vermelho, rasgadas e encharcadas de um líquido escuro, envolviam-na, pingando gotas que chiavam ao tocar o chão.
Um frio subiu por sua espinha, e a sensação de estar entre dois mundos a dominava, o ar dividido entre o real e algo além, algo que ela nunca enfrentara antes. A estatueta vibrava, uma pulsação que sentia nos ossos, um ronronar baixo e faminto, como se viesse de um lugar além do tempo. O cheiro era fétido, uma mistura de mofo úmido, ferro podre e carne apodrecendo, mascarado por uma doçura enjoativa que fazia seus olhos lacrimejarem. Uma compulsão a puxava, uma curiosidade que não era dela, sussurrando em sua mente, empurrando-a para tocar a estatueta. Ela recuou, o coração disparado, mas o chão tremeu, e uma torrente de insetos jorrou do armário, uma maré negra e pulsante que rastejava, voava e saltava com fúria cega.
Eram criaturas grotescas, formadas pela energia sombria que impregnava o prédio: escorpiões do tamanho de mãos humanas, exoesqueletos brilhando como obsidiana molhada, caudas curvas pingando veneno amarelo que chiava ao corroer o chão; baratas colossais, carapaças rachadas abrindo asas membranosas cobertas de espinhos, pulsando com gosma verde; centopeias sinuosas, segmentos vermelho-sangue brilhando com um brilho oleoso, cada pata terminando em garras afiadas; aranhas inchadas, corpos peludos carregando sacos de veneno que pulsavam como corações, olhos múltiplos faiscando vermelho. O zumbido ensurdecedor rasgava o ar como um coro de tormento.
Yuki gritou, um som rouco e visceral, recuando enquanto os insetos subiam por suas pernas, picando e rasgando. Um escorpião cravou o ferrão em seu tornozelo, o veneno queimando como ácido, subindo em linhas ardentes; uma barata escalou seu braço, mandíbulas serrilhadas arrancando pedaços de pele, sangue escorrendo quente e viscoso. Ela derrubou a lanterna, o feixe girando loucamente enquanto os insetos continuavam a jorrar, cobrindo as paredes, o teto, o chão, uma massa viva que se movia como um organismo único, faminto e cego.
Na sala principal, Hiroshi jazia inconsciente, o ar vermelho pulsando ao seu redor como veias expostas. De repente, um silêncio cortante tomou o espaço, interrompendo o zumbido infernal dos insetos. A entidade que pairava sobre ele, uma forma grotesca de pele rachada e garras pingando pus, parou, seus olhos amarelos faiscando com uma confusão que logo se transformou em pavor. Um som gutural escapou de sua garganta, um lamento agudo que ecoou como vidro estilhaçando, enquanto seu corpo começou a se contorcer violentamente. As asas de osso se dobraram sobre si mesmas, estalando em fragmentos que caíam como cinzas úmidas, e a pele rachada se desfazia em tiras negras que se dissolviam no ar, deixando um cheiro acre de enxofre queimado. A criatura gritou, um som que parecia rasgar a própria realidade, antes de colapsar em um monte de pó escuro, tremendo uma última vez enquanto se dissipava completamente. No chão, a estatueta que a invocara rachou ao meio, as faixas vermelhas carbonizando-se em cinzas, os olhos de ônix explodindo em pó fino que se espalhou como fumaça.
Hiroshi abriu os olhos lentamente, o brilho sutil em seu olhar desaparecendo como uma chama sufocada. Ele se levantou em silêncio, o rosto impassível, os movimentos carregados de uma quietude sombria e enigmática. Sem hesitação, caminhou até o corredor interno, descendo as escadas com passos firmes, cada degrau rangendo sob seu peso como ossos quebrados.
No quarto ao fundo, Yuki enfrentava a maré de insetos, o zumbido ensurdecedor preenchendo o espaço. Escorpiões picavam suas pernas, o veneno ardendo como fogo líquido; baratas rasgavam sua pele, arrancando carne em pedaços sangrentos; centopeias enrolavam-se em seus tornozelos, garras perfurando até o osso; aranhas corriam por seus braços, injetando toxinas que faziam os nervos gritarem. Ela gritou, batendo os braços contra as criaturas, chutando o chão, esmagando dezenas em explosões de gosma verde e amarela que chiavam ao tocar o piso. O sangue escorria de suas feridas, misturando-se ao líquido viscoso que pingava das faixas da estatueta, e o ar ao seu redor parecia sufocá-la, carregado de uma energia que a pressionava como mãos invisíveis.
A estatueta no centro do quarto pulsava mais rápido, os caracteres na base brilhando com uma luz pútrida que parecia viva. Uma sombra emergiu dela, uma forma alada e retorcida, com um bico quebrado que gotejava um líquido negro e olhos que eram buracos sem fim, sugando a luz do ambiente. A entidade avançou, suas asas membranosas arrastando pelo chão, deixando rastros de cinzas ardentes. Yuki recuou, tropeçando nos destroços do quarto, o coração disparado, a respiração entrecortada. Ela sabia que a estatueta era a fonte de tudo, mas o veneno em suas veias a enfraquecia, cada movimento uma agonia que ameaçava apagá-la.
Sua avó a ensinara rituais budistas para proteção, e um exorcismo exigia intenção, fogo e um selo contra o mal. Vasculhando o quarto com mãos trêmulas, encontrou uma lata enferrujada, as bordas afiadas como dentes. Pegou o isqueiro do bolso e arrancou um pedaço do tecido vermelho da estatueta, o material quente e úmido contra seus dedos, pulsando como se tivesse vida própria. Colocou a estatueta no centro do quarto, traçando um círculo ao redor dela com a poeira do chão, imaginando-o como um mandala de contenção. Acendeu o tecido com o isqueiro, a fumaça subindo em espirais negras, e começou o Sutra do Lótus:
— Namu Myoho Renge Kyo…
A cada repetição, ela jogava um punhado de poeira sobre a estatueta, as palavras ecoando no ar vermelho como um trovão sagrado. O mala de contas em seu bolso vibrou, e ela o enrolou em torno da lata, batendo com a lanterna para criar um som rítmico que cortava o silêncio profano. A entidade rugiu, um som que fez o chão tremer, e avançou, suas garras cravando o piso, o líquido negro escorrendo de sua boca como um rio de veneno. Yuki não parou, sua voz ganhando força, mesmo enquanto o veneno queimava suas veias e os insetos continuavam a rasgar sua carne.
— Namu Myoho Renge Kyo! — gritou, batendo a lata com força, o som ressoando como um sino. A fumaça do tecido subiu mais alto, envolvendo a entidade, e as contas do mala brilharam com uma luz suave, cortando o vermelho infernal. A entidade se contorceu, asas de osso e penas podres desmoronando em cinzas úmidas, mas ainda resistia, sua presença sufocante pressionando Yuki como uma montanha invisível. O ar ao redor dela tremia, e a estatueta começou a rachar, linhas finas se espalhando pela madeira, mas a entidade não cedia, alimentada por uma energia que parecia interminável.
Yuki caiu de joelhos, o corpo tremendo, o veneno e o esforço físico levando-a ao limite. A entidade avançou mais uma vez, as garras a centímetros de seu rosto, o líquido negro pingando sobre sua pele e queimando como ácido. Ela gritou, um som de desespero e determinação, e jogou a lata contra a estatueta, o impacto fazendo-a explodir em fragmentos que se incendiaram com a fumaça do tecido. A entidade rugiu uma última vez, um som que parecia rasgar a realidade, antes de começar a se desfazer, suas asas se desfazendo em cinzas, o corpo colapsando em uma massa de pó negro que se espalhou pelo chão. A estatueta, agora em pedaços, queimava com uma chama azulada, consumindo os caracteres arcaicos e as faixas vermelhas até que nada restasse além de cinzas.
O quarto ficou em silêncio, a luz vermelha piscando uma última vez antes de apagar, deixando apenas a escuridão e o eco do mantra. Yuki caiu para frente, o corpo devastado, o sangue escorrendo de suas feridas em riachos quentes, o veneno pulsando em suas veias como fogo líquido. Ela arrastou-se para fora do quarto, cada movimento uma agonia, os dedos cravando no carpete pegajoso enquanto tentava alcançar a escadaria. Precisava encontrar Hiroshi, precisava saber se ele ainda estava vivo.
Hiroshi, já desperto, descia as escadas quando a encontrou. Yuki, à beira da morte, arrastava-se pelos degraus, o corpo coberto de sangue e feridas abertas, o rosto pálido e contorcido em uma máscara de dor. Seus olhos semicerrados captaram apenas uma silhueta alta recortada contra a penumbra, uma figura que parecia ao mesmo tempo familiar e estranha, envolta em uma aura que ela não conseguia compreender. Com um sussurro rouco, quase engolido pelo som do prédio que começava a desmoronar, ela murmurou: “Quem… é você…” Antes que a escuridão a consumisse, seus olhos se fecharam, o corpo colapsando nos degraus como uma marionete cujas cordas foram cortadas.
Hiroshi a ergueu nos braços, o gesto lento e deliberado, os músculos tensos sob a jaqueta rasgada. Seus olhos, opacos e distantes, brilhavam com um fulgor sutil, como brasas sob cinzas, e seu rosto, pálido e coberto de suor, estava rígido, sem traço do sarcasmo ou do nervosismo de antes. Ele desceu as escadas, cada passo ecoando com uma cadência quase ritualística, enquanto o Maniwa Heights começava a se deteriorar ao seu redor. As paredes rachavam, virando pó cinzento que caía em cascata, como areia escorrendo por uma ampulheta quebrada. O selo do pássaro em chamas, gravado no chão da sala principal, apagava-se, as linhas sangrentas secando em cinzas que o vento levava para longe. Vigas de aço retorciam-se como galhos secos, desmoronando em montes de detritos que se desfaziam em pó fino, e o ar cheirava a nada, como se o próprio mal que impregnava o lugar estivesse evaporando.
Das sombras, entidades menores emergiram, resquícios da energia maligna que ainda habitava o prédio. Sombras aladas com bicos quebrados, enxames de insetos grotescos, e formas humanoides de pele rachada e olhos brilhantes avançaram, suas garras esticadas em direção a Hiroshi, sussurrando maldições em línguas esquecidas. Mas, ao se aproximarem, cada uma se contorcia em um espasmo de terror, seus corpos se desfazendo em pó negro que se dissipava no ar, como se uma força invisível e implacável as consumisse antes mesmo de tocarem sua pele. Um enxame de baratas colossais explodiu em cinzas, os exoesqueletos rachando com estalos secos; uma sombra alada desabou, suas asas se desfazendo em flocos que caíam como neve suja; uma criatura humanoide, com garras pingando pus, gritou antes de colapsar em um monte de pó que se espalhou pelo chão, seus olhos brilhantes apagando-se como estrelas moribundas.
O prédio inteiro parecia gemer, um lamento longo e grave que ecoava como o último suspiro de um titã moribundo. O mármore do saguão, antes reluzente, rachava e se desfazia em pó, os fragmentos flutuando no ar como partículas de um sonho desmoronando. As janelas estilhaçadas deixavam o vento uivar pelo espaço vazio, carregando o pó para fora, onde ele se misturava à escuridão da noite. Hiroshi atravessou o saguão em ruínas, o peso de Yuki em seus braços parecendo não o afetar, apesar da palidez que tomava seu rosto e do suor que escorria por sua testa. Ele saiu do prédio, o céu escuro acima salpicado de estrelas indiferentes, e depositou Yuki no chão com uma gentileza quase cerimonial, os dedos manchados de sangue traçando o contorno de seu rosto pálido antes de recuar.
Hiroshi caminhou até o carro, o metal amassado refletindo a luz fraca da lua. Abriu a porta com um rangido, pegando o celular no assento do passageiro, os dedos movendo-se com uma precisão fria. Discou o número dos avós de Yuki, a tela iluminando seu rosto em sombras duras, os olhos vazios fixos na escuridão. Quando a voz trêmula de uma mulher idosa respondeu, ele falou em um tom baixo, quase inaudível, carregado de uma calma perturbadora: “Venham agora. O caso está encerrado, mas Yuki está dormindo”
O celular escorregou de sua mão, caindo na terra úmida com um som abafado. Hiroshi cambaleou, o corpo cedendo sob um peso invisível, e desabou ao lado de Yuki, o rosto pálido virado para o céu, os olhos abertos mas sem vida no olhar. O silêncio caiu como uma mortalha, absoluto e opressivo, engolindo o ruído do prédio que agora era apenas um monte de pó cinzento, levado pelo vento da noite como cinzas de um túmulo apagado.