— Hm… essa luz… suave demais para ser real.
O som rítmico, semelhante ao gotejar de uma torneira distante, reverberava pelo espaço, preenchendo o vazio como uma melodia inquietante.
Os olhos de Hiroshi se abriram com uma lentidão quase ritualística. As pálpebras tremulavam ao ritmo das gotas que dançavam contra o mundo lá fora, como se cada uma trouxesse de volta um fragmento de sua consciência perdida.
E então a luz, suave e inexorável, atravessou a vastidão abissal de seus olhos, preenchendo-os como uma aurora que desafia o fim da noite.
Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao perceber a estranheza do lugar. Não havia janelas, e as paredes de pedra pareciam ancestrais, como se pertencessem a um mundo esquecido. A única fonte de luz era uma lâmpada suspensa no centro, oscilando entre a vida e a morte em lampejos erráticos.
Que lugar é esse? Como vim parar aqui? — pensou, mas sua voz soou abafada, como se o próprio ambiente absorvesse suas palavras.
O chão estava coberto por pedras irregulares e brutas. Teias de aranha, finas e quase invisíveis, pendiam dos cantos mais sombrios. Uma camada de poeira fina cobria tudo, dando à cena a impressão inquietante de que o tempo ali havia congelado, preso nas garras da morte e do esquecimento.
No centro da sala, a luz vacilante revelava uma mesa cirúrgica, dominando o ambiente com sua presença silenciosa e mórbida. Sua superfície metálica estava levemente curvada, como se convidasse um paciente invisível a deitar-se ali, aguardando pacientemente o próximo corpo a ser examinado pela fria lâmina do destino.
Em volta da mesa, o ambiente sussurrava sobre sua antiga função: um consultório ou hospital abandonado. Uma estante, próxima à mesa, ostentava utensílios cirúrgicos quebrados e enferrujados, espalhados de forma caótica, como se o tempo, impiedoso, tivesse deixado marcas indeléveis em cada um deles, roubando sua utilidade e sua dignidade.
O ar estava saturado de um cheiro de metal velho, forte e enjoativo, que parecia se infiltrar nas narinas de Hiroshi, como um lembrete insuportável de um passado que ele não conseguia mais recordar, mas que o atormentava de qualquer maneira.
A sala parecia estar trancada, sem saída, como se ele estivesse preso em uma memória distante. A única possível fuga era uma grande porta de ferro, maciça e opressiva, que se erguia diante dele, imponente e ameaçadora, como uma boca esperando para engoli-lo.
Com passos lentos, quase hesitantes, Hiroshi se aproximou da porta. Cada movimento parecia mais pesado que o anterior, como se a própria gravidade tivesse começado a conspirar contra ele, puxando-o para baixo, absorvendo sua energia vital.
Sua respiração, agora irregular, misturava-se ao som do silêncio imenso, enquanto um tremor incontrolável percorre seu corpo, amplificando a sensação de que ele estava se aproximando de algo fatal.
De repente, um som estranho começou a emanar do lado de fora. Era uma sirene distante, ressoando com um tom inquietante, fazendo o coração de Hiroshi disparar.
— O que está acontecendo lá fora? — pensou, com uma sensação crescente de pânico começando a engolir seus pensamentos. O cenário ao seu redor tornou-se, de repente, um labirinto sem saída, e sua mente, incapaz de encontrar uma explicação lógica, começou a vacilar sob o peso da dúvida. O que poderia haver atrás daquela porta?
Com um movimento quase automático, ele se aproximou da porta, sentindo o chão duro sob seus pés. Mas antes que pudesse tocar a maçaneta, um clarão abrupto o cegou. Era como se a luz tivesse decidido invadir seu espaço pessoal, com tal intensidade que o fez parar, atordoado, e hesitar por um momento, totalmente desconectado de tudo ao seu redor.
No instante seguinte, Hiroshi acordou. O som do despertador, agora um ruído irritante, desconcertante, cortou o silêncio do quarto, arrancando-o de seu transe. Sua mente ainda estava confusa, o eco do sonho persistindo em seu cérebro, e uma sensação incômoda, como se algo estivesse prestes a acontecer, não o abandonava.
Com esforço, ele se virou para desligar o despertador, que continuava a berrar, como se não tivesse percebido que ele já estava acordado.
Hiroshi olhou para o relógio na mesa: eram apenas seis horas da manhã. O sol parecia estar coberto pelas nuvens, e a luz fraca que entrava pela janela lembrava o clarão que ele vira no sonho.
Ele se levantou lentamente, esfregando os olhos para afastar a névoa do sono. Vestiu-se rapidamente com o uniforme da escola: um suéter escolar de manga longa, de cor azul escuro, por cima de uma camisa social branca amassada, complementado por uma gravata vermelha.
O tecido do suéter parecia um pouco apertado, e a gravata estava ligeiramente torta, mas o frio o fazia sentir-se mais confortável com aquela camada extra. Estava frio o suficiente para que ele sentisse um leve arrepio ao sair da cama, e o suéter proporcionava um mínimo de aconchego.
Ao se debruçar diante do espelho, Hiroshi parou por um instante. O que viu refletido não era apenas um rosto marcado pelo cansaço, mas a síntese de sua juventude e determinação. Seus olhos, grandes e expressivos, carregavam tanto a inocência da idade quanto uma centelha de experiência que desmentia seu olhar sonolento.
As sobrancelhas levemente arqueadas e os cabelos, ainda com fios desalinhados, conferiam-lhe um ar despretensioso, mas singular. Apesar das marcas sutis do cansaço – as sombras discretas sob os olhos e a palidez que contrastava com a energia interior – havia algo em seu semblante que falava de coragem e resiliência.
Hiroshi desceu as escadas com passos ainda pesados pelo sono, mas firmes, como quem já se acostumou à dança que a rotina impõe.
O aroma do pão torrado, quente e convidativo, preenchia a casa, enquanto as vozes suaves e matinais vinham da cozinha, como o prelúdio de um dia que, embora ainda tímido, já se anunciava. Quando entrou na cozinha, foi recebido por um sorriso leve, mas perceptivelmente surpreso, de sua mãe, Aiko.
— Olha só quem decidiu acordar cedo hoje! — disse Aiko, sua voz brincando com a leveza do momento, enquanto mexia algo na panela com a graça de quem faz da cozinha sua pequena arena de encantamentos. — Você levantou rápido, até achei que ia precisar te chamar mais umas três vezes.
Kaede, sua irmã mais nova, estava sentada à mesa, mordendo um pedaço de pão com geleia. Ela ergueu uma sobrancelha, seus olhos brilhando com uma provocação juvenil.
— Eu já estava me perguntando se ia precisar ir te puxar da cama, hein? — comentou, com um sorriso travesso que refletia a diversão que ela sempre encontrava em desestabilizar Hiroshi, como se a vida fosse uma série de piadas privadas entre eles.
Hiroshi, incapaz de segurar o sorriso que surgia espontaneamente, revirou os olhos, mas manteve a brincadeira.
— Claro, claro… como se eu fosse o único que demora a acordar nesta casa — disse, sua voz uma mistura de indignação fingida e diversão genuína, enquanto puxava uma cadeira com um movimento preguiçoso.
Kaede deu de ombros, ainda sorrindo como se soubesse algo que Hiroshi ainda não tinha entendido.
— Ah, foi só umas poucas vezes, vai — ela disse, tentando se fazer de inocente, mas sua risada entregava a travessura que havia no fundo.
— Sei, sei… — Hiroshi retrucou, pegando um pedaço de pão da mesa e espalhando manteiga sobre ele com um gesto preguiçoso, quase como se o simples ato de se alimentar fosse um pequeno desafio ao tédio da manhã.
Kaede, dando uma mordida em seu pão, fez uma expressão divertida, os olhos desafiando-o.
— Pelo menos hoje você não está parecendo um fantasma — disse ela, a voz cheia de uma zombaria carinhosa.
Hiroshi, sorrindo de leve, olhou para a irmã com um brilho malicioso nos olhos.
— Ah, se eu fosse um fantasma, com certeza te assustaria todo dia só para te ver gritando — respondeu com um tom sarcástico, erguendo-se para se afastar. Mas, de maneira inesperada, ele se inclinou para frente e, com um gesto rápido e afetuoso, deu um beijo carinhoso na testa de Kaede, antes de se endireitar novamente.
Kaede fingiu estar surpresa, mas não conseguiu esconder o sorriso, que se esticava de uma forma que a tornava impossível de ser disfarçada.
Após um café da manhã rápido, Hiroshi pegou sua mochila, os passos ainda suaves e mornos. Quando se dirigiu para a porta, hesitou por um instante e olhou para o quarto. Um arrepio percorreu sua espinha, como se o eco do seu sonho – uma sombra silenciosa de algo indefinido – o seguisse como uma presença incômoda.
Ele balançou a cabeça, tentando espantar a sensação estranha, como quem tenta afastar uma ideia desconfortável que não parece se encaixar com a realidade que ele conhecia.
— Hora de encarar o dia, — murmurou para si mesmo, com uma determinação renovada.
Um frio na barriga surgiu à medida que ele a abria, revelando um céu lindo e nublado do lado de fora. O ar fresco da manhã o envolveu, trazendo o cheiro de grama molhada, uma lembrança da chuva da noite anterior.
— Vamos nessa.
E com um último suspiro, Hiroshi saiu para o novo dia, deixando para trás o aconchego da casa e a promessa de um novo começo.
O caminho até a escola, sempre o mesmo, parecia ser uma repetição confortável, mas ainda assim cheia de detalhes que ele observava com um certo distanciamento, como se o mundo lá fora estivesse aguardando pacientemente por ele.
Caminhou pelas ruas ainda tranquilas, com as lojas ainda se abrindo e os vendedores ajeitando suas mercadorias. O som dos passos ecoava nas calçadas limpas, o aroma suave de peixe grelhado misturado ao odor fresco do ar da manhã.
À medida que se aproximava da estação de metrô, o burburinho dos outros estudantes, todos já com seus uniformes impecáveis, foi crescendo ao seu redor.
O metrô, sempre pontual, chegou em poucos minutos. Dentro, o vagão estava relativamente tranquilo, com os passageiros de olhos baixos, imersos em seus próprios mundos. Hiroshi observou discretamente, notando como os outros pareciam completamente alheios ao espaço ao redor
As mulheres com suas pastas e bolsas, os homens com seus ternos alinhados, e os estudantes – um microcosmo de uniformes de marinha, saia plissada e sapatos brilhantes. O som das rodas deslizando sobre os trilhos fazia parte da paisagem sonora que ele já conhecia tão bem. Nenhuma palavra era dita; o metro, como sempre, se movia com a precisão de um relógio.
Quando finalmente chegou à estação, Hiroshi se misturou à multidão, todos seguindo o mesmo fluxo em direção à saída. O vento fresco da manhã parecia mais leve agora, como se a cidade já estivesse se preparando para o calor do dia.
Ele passou pelas lojas de conveniência, onde os empregados, sempre com um sorriso educado, arrumavam as prateleiras com precisão.
Ao entrar na escola, o som das conversas entre os colegas tomava conta do ambiente, como uma sinfonia distante, enquanto o cheiro familiar de giz e papel se misturava ao ar. Era um cheiro que ele já associava ao próprio conceito de “escola”, e que sempre o fazia se sentir em casa, por mais cansativo que o dia fosse.
A sala de aula estava repleta de estudantes já acomodados em seus lugares. Alguns com os olhos fixos em seus celulares, outros conversando em murmúrios suaves, como se o ambiente fosse uma extensão da própria casa.
Hiroshi se sentou em seu lugar habitual, uma cadeira perto da janela, onde a luz suave da manhã se filtrava pelas persianas e caía sobre sua mesa. Ele soltou um suspiro, tentando afastar a sensação de cansaço que sempre acompanhava os primeiros momentos do dia.
A professora entrou na sala com passos tranquilos, visivelmente cansada, mas ainda mantendo aquele sorriso acolhedor que parecia fazer parte de sua essência.
Ela segurava uma prancheta nas mãos, os olhos já acostumados com a rotina do começo de aula. Ao vê-la, os alunos se silenciaram instantaneamente, como se uma onda invisível de respeito passasse pela sala.
Antes de começar a chamada, todos se levantaram em uníssono, com a postura rígida e respeitosa, como se o simples ato de estar em presença da professora exigisse essa atitude. Com uma leve inclinação de cabeça, em sinal de respeito, todos disseram em coro:
— “Sensei, ohayou gozaimasu!”
A professora, com um sorriso suave, respondeu com a mesma formalidade, levantando ligeiramente a mão em saudação.
— “Ohayou gozaimasu, todos.”
Era um momento quase cerimonial, uma rotina que, embora simples, refletia o profundo respeito que os estudantes tinham pela professora, e a harmonia que se estabelecia entre eles, como se estivessem todos em sintonia com o ritmo do dia que começava.
Após o cumprimento, os alunos se sentaram novamente, aguardando com atenção enquanto a professora, com um movimento elegante, começava a chamada.
— Tanaka-kun! — chamou a professora, sua voz clara e firme, mas com uma suavidade que ainda carregava um leve toque de paciência.
Tanaka, sentado em sua cadeira, quase saltou de empolgação, como se estivesse esperando aquele momento desde o início da aula.
Seus óculos estavam perfeitamente alinhados sobre o nariz, e seus cabelos, cuidadosamente penteados, davam a impressão de que ele passava mais tempo organizando sua aparência do que talvez se preocupando com algo mais. Ele levantou a mão com entusiasmo, seus olhos brilhando de animação.
— Hai! Presente! — respondeu ele, a voz cheia de energia, com um sorriso largo no rosto, como se sua presença na sala fosse um momento de celebração pessoal.
Era impossível não perceber o brilho nos olhos de Tanaka, como se cada dia na escola fosse uma nova oportunidade de aprender e absorver o máximo de conhecimento possível.
A professora, vendo a empolgação do aluno, mal podia evitar uma leve risada, divertida pela reação exagerada, mas também admirando seu entusiasmo. Ela continuou com a chamada sem demora, a aula já começando a seguir seu curso.
— Sato-san! — A professora chamou, e uma menina com cabelos curtos, sentada perto da janela, levantou a mão timidamente, sua voz suave cortando o ar.
— Hai! — respondeu ela, desviando rapidamente o olhar dos colegas, seu rosto ligeiramente ruborizado pela atenção.
Quando a professora chegou ao nome de Hiroshi, um silêncio sutil caiu sobre a sala, quase como se o ritmo da chamada tivesse mudado. Hiroshi, então, sentiu o peso de um olhar que não era seu, e o nervosismo se instalou novamente, algo distante das respostas simples e seguras de Tanaka.
— Yamada-kun! — chamou a professora, sua voz agora mais clara, destacando-se entre as respostas.
Hiroshi hesitou, sentindo o olhar dos colegas sobre ele. Ao contrário de Tanaka, ele não se sentia em casa sob os focos de atenção. Ele fechou os olhos por um instante, tentando conter a ansiedade que se apoderava dele.
— Yamada Hiroshi! — A professora insistiu, o tom levemente firme, mas sem perder a cordialidade.
O olhar de seus colegas se fixou nele, e Hiroshi, com as mãos começando a suar, finalmente se endireitou na cadeira, respirando fundo.
— Presente! — murmurou, a voz baixa, mas audível. Ele não queria, de forma alguma, atrair mais atenção do que o necessário.
A professora, compreendendo sua timidez, respondeu com um sorriso breve e amigável, um gesto que parecia reconfortar Hiroshi, mas que não era o suficiente para dissipar toda a tensão em seu corpo.
Ele forçou um pequeno sorriso, mas seus pensamentos estavam longe da sala de aula, ainda lutando contra a ansiedade que o acompanhava.
— Muito bem, turma. Hoje começaremos o novo projeto de geografia. O tema será sobre a geografia física do Japão, com ênfase nas montanhas, rios e climas. Cada grupo escolherá um subtema para explorar mais profundamente.
Imediatamente, o ambiente se animou. Alunos começaram a conversar entre si, discutindo sobre como se organizariam. Os grupos tradicionais começaram a se formar sem muito esforço, como se já soubessem instintivamente em quais áreas queriam trabalhar.
— Eu fico com as montanhas, pessoal. É o que mais gosto! — disse um colega, sorrindo entusiasticamente para os amigos.
Outro grupo, que já estava se formando perto da janela, começou a discutir sobre os rios, enquanto um grupo do fundo decidiu para explorar o impacto dos desastres naturais nas áreas esportivas.
Naquela hora, Hiroshi estava em seu lugar, observando os colegas formarem os grupos com naturalidade. A cada grupo que se formava, uma sensação de desconforto tomava conta de Hiroshi. Ele sabia como era fácil para os outros se unirem, mas ele não tinha muita afinidade com nenhum dos grupos.
Não gostava da ideia de ser apenas um membro em meio a um monte de outras pessoas, especialmente em um projeto em que seria necessário interagir tanto.
“Será que eu devo me juntar a um grupo?” — pensou, sem saber qual escolher. Ele observava os grupos se formando, mas nenhum deles parecia se encaixar bem com sua personalidade.
Um grupo composto de três meninas se formara, cogitando falar sobre florestas.
A professora, andando pela sala, fez uma pausa ao ver Hiroshi, que ainda não havia escolhido seu grupo.
— Hiroshi-kun, já decidiu com qual grupo irá trabalhar? — perguntou ela, sua voz calma, mas firme, como de costume.
Hiroshi, sentindo a pressão de ter que tomar uma decisão, respirou fundo e tentou manter a calma. Ele pensou por um momento e, finalmente, murmurou:
— Eu vou trabalhar sozinho, sensei. — A resposta saiu sem hesitação, mas com a insegurança que ainda marcava sua escolha. Hiroshi sabia que, ao fazer isso, ficaria isolado do resto da turma, mas ele não conseguia imaginar outra forma de fazer o projeto.
A professora o olhou por um momento, como se ponderasse sobre a decisão, mas logo acenou com um sorriso.
— Entendido. Se mudar de ideia, me avise, Hiroshi-kun. Mas boa sorte com seu trabalho individual. — Ela não fez mais comentários, movendo-se para o próximo aluno.
Com isso, Hiroshi ficou em seu lugar, observando os grupos já formados, enquanto o tempo passava e os colegas se envolviam nas discussões, escolhendo tarefas, dividindo responsabilidades e fazendo planos.
A turma, como sempre, fluía com uma energia própria, os grupos se organizando de forma quase mecânica, mas Hiroshi se manteve firme em sua escolha, sentindo um alívio silencioso ao estar livre da pressão social do trabalho em grupo.
Quando o sinal finalmente soou, indicando que a aula estava terminada, os grupos começaram a se dispersar, com alguns rindo e outros já se preparando para começar a trabalhar. Hiroshi, por sua vez, sentiu-se aliviado. Ele sabia que aquele seria um projeto de desafios, mas ele tinha sua própria maneira de enfrentá-los.
os alunos começaram a se dispersar para os clubes que formavam após o horário das aulas. No Japão, os clubes extracurriculares eram uma parte essencial da vida escolar, e Hiroshi sabia que precisaria escolher um, mesmo que a ideia de se envolver em algo fora dos seus estudos não fosse exatamente atraente para ele.
Ele preferia a paz e a tranquilidade dos seus próprios pensamentos, longe de grandes agitações ou interações forçadas. Então, com isso em mente, ele procurou um clube que fosse mais tranquilo, onde não fosse necessário muita interação social, e, quem sabe, pudesse se concentrar em estudar seus próprios interesses.
Enquanto andava pelos corredores, passou pela porta de um clube que imediatamente chamou sua atenção. A placa na porta dizia: Clube de Investigação Extracientífica. Hiroshi hesitou, curioso sobre o que poderia ser, e decidiu dar uma olhada.
Ao entrar na sala, Hiroshi se deparou com uma cena um tanto incomum. Em torno de uma mesa, três alunos — dois meninos e uma menina — estavam em uma sessão de tabuleiro ouija.
Os rostos deles estavam sérios, quase como se estivessem em uma espécie de cerimônia, e o clima na sala era, no mínimo, estranho.
A menina, com cabelo longo e olhos brilhando de entusiasmo, foi a primeira a notar sua presença.
— Opa, um novo aluno! Você veio para se juntar a nós? — ela perguntou, quase pulando da cadeira. — Estamos precisando de mais dois membros para completar o clube!
O garoto de óculos, que estava ao lado da menina, sorriu de forma aliviada e levantou a mão como se estivesse chamando um velho amigo para se juntar a uma conversa importante.
— Opa, um novo aluno! Veio para se juntar a nós? — perguntou a menina, quase saltando da cadeira com entusiasmo genuíno. — Estamos precisando de mais dois membros pra completar o clube!
O garoto de óculos ao lado dela deu um sorriso hesitante, como se finalmente enxergasse uma luz no fim de um túnel social.
A menina, não esperando por formalidades, deu um passo à frente e fez um gesto dramático.
— Deixe que eu me apresente primeiro! Sou Natsumi Ishikawa, presidente interina e porta-voz autoproclamada deste grupo maravilhoso e ligeiramente marginalizado. — Disse isso com um riso despreocupado, enquanto ajeitava a franja desalinhada.
Ela tinha olhos grandes e um ar de líder que não deixava dúvidas sobre quem mandava ali, mesmo com suas meias de bichinho e o casaco surrado.
Ela apontou para o garoto de óculos.
— Esse aqui é Kenji Ishida, nosso cérebro técnico, especialista em fórmulas matemáticas inúteis e piadas que ninguém entende.
Kenji ajustou seus óculos de aro grosso, revelando um rosto angular e uma acne rebelde na testa.
— Oi… Eu acho? — murmurou, parecendo desconfortável com a súbita atenção.
Natsumi continuou, agora apontando para o terceiro membro do grupo, que estava sentado com os braços cruzados e um semblante fechado.
— E por fim, nosso querido Shota Yamamoto, mestre das teorias mirabolantes e também o único que consegue comer três tigelas de ramen em cinco minutos.
Shota, um menino magrelo e alto, com o cabelo desgrenhado e uma camiseta dois números menor que o ideal, deu de ombros. Tinha um rosto comum, levemente amassado pela puberdade, e parecia preferir que ninguém falasse com ele.
— Tá, mas só porque tava com fome. — Disse, com a voz grave.
Natsumi piscou para Hiroshi com um sorriso divertido.
— Espera aí… — disse ele, com um tom seco. — Vocês chamam isso de Clube de Investigação Extracientífica, mas estão com um Ouija?
A menina de cabelos curtos soltou uma risadinha nervosa, afastando uma mecha rebelde do rosto.
— Sim, isso! Estamos investigando fenômenos… bem, coisas que a ciência convencional não explica! — Ela gesticulou de forma animada.
O outro menino ao seu lado apenas observava em silêncio, com os olhos fixos no tabuleiro, como se estivesse esperando uma revelação divina.
Hiroshi franziu a testa, lendo o nome do clube na porta: Clube de Investigação Extracientífica. Ele se sentou na cadeira próxima, ainda não totalmente convencido.
— Investigação Extracientífica, huh… — Ele murmurou, mais para si mesmo. — Isso é… um clube de ciências?
Hiroshi olhou ao redor. A sala estava cheia de livros antigos, um tanto empoeirados, sobre o oculto e o paranormal.
O tipo de material que ele jamais esperaria encontrar em um ambiente científico.
— Então, o que vocês fazem aqui? Um experimento com o tabuleiro ouija? — Hiroshi perguntou, apontando para a mesa. Ele estava um pouco desconfiado e parecia não ter entendido.
O garoto de óculos sorriu, como se tivesse a resposta perfeita.
— Sim! Exatamente! Estamos tentando fazer contato com espíritos. A ciência ainda não conseguiu provar a existência deles, então estamos aqui para descobrir! — Ele falou com um tom de quem estava prestes a mudar o rumo da história da humanidade.
A menina se animou ainda mais, colocando as mãos sobre o tabuleiro.
— Isso! O tabuleiro ouija é uma ferramenta antiga. Muitas pessoas relatam ter experiências reais com ele, vai ser incrível se você se juntar a nós.
— Aliás, como você se chama mesmo? Perguntou Natsumi enquanto inclinava levemente a cabeça.
— Sou Yamada Hiroshi e estou no primeiro ano.
— hm… Hiroshi… Certo, vamos fazer um experimento! — Ela disse, já começando a se posicionar para a sessão.
Hiroshi, com uma expressão de leve ceticismo, começou a observar a cena.
O outro menino, sem dizer uma palavra, estava ligeiramente tenso, como se estivesse esperando uma resposta do além.
— Deixe-me entender. Vocês realmente acreditam que esse tabuleiro pode nos conectar com espíritos? — Hiroshi perguntou, colocando as mãos na cadeira e inclinando-se para frente, preparado para uma conversa mais séria.
A menina olhou para ele com um sorriso enigmático, como se tivesse a resposta definitiva.
— Sim! O tabuleiro funciona com a energia que o espírito emana. Você toca as letras e ele se comunica com você.
Cientistas que estudaram o fenômeno disseram que isso é real, mas a ciência ainda não consegue explicar. E é isso que estamos tentando fazer: encontrar a prova científica disso! — Ela se empolgava a cada palavra.
Hiroshi, agora mais focado, cruzou os braços.
— Sério? Bem, eu estudei algo sobre isso. O “efeito ideomotor”. Já ouviram falar? — Ele começou, com um sorriso ligeiramente irônico. — É um fenômeno psicológico onde os movimentos involuntários das mãos podem fazer o ponteiro do tabuleiro se mover, sem que a pessoa perceba. Ou seja, você pensa que está sendo guiado por uma força externa, mas na verdade, é seu próprio cérebro.
A menina abriu a boca, pronta para rebater, mas o garoto de óculos rapidamente levantou uma mão.
— Ah, mas não é só isso! A ciência ainda não consegue entender como a energia pode se manifestar. O que você está dizendo pode ser verdade, mas nós também estamos tentando descobrir a real origem dessa energia! — Ele disse, tentando adicionar mais peso à conversa.
Hiroshi olhou fixamente para ele, sem perder o ritmo.
— Entendo. Mas ainda assim, isso é um truque psicológico. O efeito ideomotor é um mecanismo natural da mente humana. Não precisa de energia externa ou de espíritos para fazer o tabuleiro se mover. Isso é ciência, não sobrenatural. — Hiroshi deu de ombros, com um sorriso de quem estava se preparando para dar o golpe final.
A menina parecia desconcertada, tentando encontrar uma resposta convincente.
— Mas… mas e se estivermos falando de algo além da ciência atual? Algo que ainda não foi descoberto? — A menina insistiu, a voz um pouco mais alta agora, com um brilho determinado nos olhos. — E se eu te provar que ele se movimenta sozinho?
Hiroshi olhou para ela com um olhar cético, mas curioso. Ele sabia que ela estava tentando impressioná-lo, mas estava determinado a não cair em mais uma armadilha.
Ela então deu um sorriso, como se tivesse uma carta na manga.
— Então, vamos fazer um teste, Yamada-kun. — Ela começou, com um tom misterioso. — Para garantir que ninguém está influenciando o tabuleiro, vamos tirar as mãos de cima dele, e ninguém mais vai tocar na mesa.
Todos, por favor, tirem as mãos e fiquem bem longe. — Ela indicou, apontando para o centro da mesa, onde o tabuleiro ainda estava, inerte.
Os outros dois meninos olharam um para o outro, desconcertados, mas seguiram a ordem. Com cuidado, todos se afastaram da mesa.
O ambiente se tornou mais denso, como se o ar tivesse parado de se mover, enquanto uma expectativa invisível se espalhava pela sala.
A menina, com gestos leves, afastou as mãos da mesa, sendo seguida pelos outros dois meninos, que igualmente retiraram suas mãos com cuidado.
Hiroshi, impassível, observava, imperturbável.
O ponteiro, então, deslizou lentamente sobre o tabuleiro, como se tivesse vida própria, traçando uma dança suave que terminou de forma curiosamente clara. Ele parou, formando palavras que pareciam ter sido ditadas de algum outro mundo.
O silêncio foi denso, como se a sala estivesse à espera de uma revelação. A menina virou-se para Hiroshi, seu sorriso se alargando, mais pela antecipação do que pelo que realmente estava acontecendo.
— Veja! Está acontecendo! O espírito está se comunicando! — ela exclamou, a alegria e o orgulho se mesclando em sua voz.
Hiroshi, no entanto, permaneceu alheio à emoção. Sem pressa de se impressionar, ele permaneceu quieto por um instante, antes de sua expressão se suavizar, substituída por uma máscara de ceticismo polido, mas sem deixar de ser cortês.
— Fascinante… — murmurou, quase como se estivesse falando para si mesmo. Levantou-se lentamente da cadeira, dando passos calculados ao redor da mesa, seus olhos afiados observando o tabuleiro com uma precisão que desmascararia qualquer engano. — Vocês realmente acharam que eu não perceberia isso?
Os três ficaram estagnados, como se as palavras de Hiroshi tivessem desconstruído o palco de sua ilusão. A menina, com um sorriso agora tenso, tentou recuperar o controle da situação.
— O que você quer dizer? Não está impressionado?
Hiroshi, com um sorriso melancólico e um brilho de inteligência nos olhos, fixou-a por um momento, antes de responder, com uma leve risada que parecia mais um convite à reflexão do que uma zombaria.
— Impressionado? Eu estou, na verdade, impressionado com a maestria com que esconderam o truque. — Ele disse, apontando vagamente para a parte inferior da mesa. — O movimento do tabuleiro está sendo manipulado por um imã poderoso. Vi você pressionando a perna contra a mesa. O efeito do imã é óbvio. Não há espíritos aqui, apenas física.
A menina parou como uma estátua, o sorriso se apagando lentamente enquanto a cor do seu rosto começava a murchar. Os outros meninos olhavam, estupefatos, para ela, e ela, tentando mascarar a vergonha, mordeu o lábio inferior, em um gesto tão humano quanto constrangedor.
— Você… percebeu isso? — ela perguntou, a voz falhando em um tom baixo de desespero.
Hiroshi, com um sorriso quase indulgente, olhou-a com uma suavidade inesperada, como se tivesse desfeito uma farsa infantil, sem a necessidade de humilhá-la.
— Claro que percebi. Eu sou cético, mas não tolo. — Ele disse, com um tom amigável, mas que fazia questão de destacar a diferença de percepção. — A mente humana, quando se depara com o desconhecido, tende a buscar explicações em qualquer lugar, exceto no óbvio.
O efeito ideomotor é um exemplo clássico disso. Não precisamos de espíritos ou forças sobrenaturais para explicar isso, só precisamos de ciência e uma boa dose de ceticismo.
O silêncio tomou conta da sala, enquanto os meninos tentavam entender o peso da revelação. A menina, sem mais argumentos, olhou para os outros, com um suspiro, levantando as mãos como quem se rende.
— Está bem, está bem, você ganhou, Yamada-kun. Eu tentei te impressionar, mas acho que me perdi no caminho.
— Ela disse, forçando um sorriso sem graça, tentando encobrir a humilhação com uma leve risada.
Hiroshi olhou para eles, e ao invés de esboçar um sorriso de triunfo, seu olhar se suavizou em um gesto quase paternal.
— Não precisam ficar assim. Eu só… queria que vocês entendessem o que estava acontecendo. — Ele disse, sentando-se novamente, sem pressa, e relaxando de forma tranquila. — Mas, se me prometerem que não me atormentarão com mais essas fantasias, estou disposto a fazer parte do grupo.
A menina, com um riso baixo e um olhar que mesclava desafio e uma ponta de simpatia, se aproximou dele.
— Não me importo se você não acredita em espíritos, contanto que esteja disposto a embarcar nesse jogo com a gente.
E assim, o Clube de Investigação Extracientífica ganhou um novo membro. Hiroshi sabia muito bem que tudo aquilo não passava de uma farsa elaborada, uma ilusão infantil construída em torno de um desejo de acreditar no impossível.
Mas ele viu, naquele momento, uma oportunidade rara de manter-se à margem, sem a pressão de seguir as convenções de outros clubes.
— Finalmente, fim de semana! — pensou Hiroshi enquanto se dirigia para a porta com passos leves.
Caminhando pelas ruas de volta para casa, sua mente começou a fervilhar com ideias para o trabalho. “Áreas de risco… talvez algo relacionado a deslizamentos de terra e como isso afeta as casas nas encostas?”
Ele imaginou as famílias que viviam em perigo constante, e um forte desejo de explorar mais sobre o tema tomou conta dele.
Quando chegou em casa, Hiroshi foi direto para a mesa de estudos. Ligou o laptop e, após algumas horas de pesquisa, encontrou algo que chamou sua atenção: uma antiga escola abandonada localizada em uma área propensa a deslizamentos de terra.
— Isso seria perfeito para o meu trabalho! — ele exclamou, animado com a descoberta.
Determinado a explorar o local pessoalmente, decidiu que iria até lá no dia seguinte. A curiosidade e a necessidade de compreender melhor a situação eram uma força motriz.
Depois do jantar, Hiroshi sentiu o cansaço do dia. Um banho quente parecia ser exatamente o que precisava para relaxar. Enquanto a água morna caía sobre ele, seus pensamentos voltaram para a escola abandonada.
Após o banho, ele se secou, vestiu o pijama e se deitou na cama. Seus olhos se fecharam lentamente, mas sua mente ainda estava ocupada, excitada pelo mistério que o aguardava na manhã seguinte.