O amanhecer em Tomita era um espetáculo tímido, com o sol lutando para atravessar um véu de nuvens escuras que pairava sobre a cidade. Hiroshi Yamada caminhava pela trilha lamacenta que levava à antiga escola abandonada, o ar frio mordendo sua pele através do suéter azul-escuro do uniforme. A mochila pesava em seus ombros, carregada com cadernos, uma câmera e um celular que ele esperava usar para seu projeto de geografia. Mas, à medida que se aproximava do destino, uma inquietação crescia em seu peito, como uma semente enraizando-se em solo fértil.
A escola surgiu à sua frente como uma relíquia esquecida, um esqueleto de madeira corroído pelo tempo. Suas paredes, outrora brancas, estavam manchadas de musgo negro, que parecia pulsar como veias sob a luz fraca. O telhado, parcialmente desabado, pendia em ângulos tortuosos, como se a gravidade tivesse desistido de sustentá-lo. As janelas quebradas, com vidros estilhaçados como dentes partidos, refletiam o céu cinzento em fragmentos irregulares, dando à construção a aparência de um cadáver que ainda respirava. O vento soprava baixo, carregando um gemido que parecia nascer das entranhas do prédio, misturando-se ao farfalhar das árvores nuas ao redor.
Hiroshi parou diante do portão enferrujado, as barras retorcidas lembrando garras congeladas no tempo. Um arrepio subiu por sua espinha, não apenas pelo frio, mas por uma sensação de errado que ele não conseguia explicar. Não é aqui que dizem que veem fantasmas? O pensamento escapou antes que pudesse contê-lo, e ele o reprimiu com força, cerrando os punhos. “Fantasmas não existem”, murmurou, a voz quase engolida pelo silêncio opressivo. Mas a dúvida, como uma sombra, permanecia.
Ajustando a mochila, ele tentou se ancorar na lógica. Estava ali por um motivo racional: estudar a erosão do terreno para seu projeto escolar. Nada mais. Mesmo assim, ao erguer os olhos para as janelas, sentiu como se elas o encarassem de volta, olhos vazios de um monstro adormecido, esperando que ele cruzasse o limiar.
Com a câmera em mãos, Hiroshi começou a explorar o exterior. O terreno era um caos de raízes expostas, contorcidas como dedos esqueléticos emergindo da terra úmida. O solo, saturado pela chuva da noite anterior, afundava sob seus tênis, exalando um cheiro acre de podridão que invadia suas narinas como uma presença viva. Ele abriu o aplicativo de medição no celular, os dedos trêmulos enquanto tentava se concentrar. “Topografia… inclinação… erosão…”, repetia, as palavras um mantra frágil contra a inquietação que crescia como uma sombra em seu peito.
A tela mostrava uma inclinação de 3,7 graus — sutil, mas suficiente para explicar o desequilíbrio da estrutura. Ele tirou fotos das áreas mais irregulares, o flash da câmera refletindo na lama, revelando texturas que pareciam orgânicas, quase pulsantes. Foi então que notou algo estranho: marcas no solo. Não eram pegadas, mas sulcos profundos e alongados, como se algo pesado tivesse sido arrastado pela terra. Hiroshi se agachou, passando os dedos pelas bordas úmidas, a terra fria aderindo à sua pele como um segredo relutante.
“Talvez algum equipamento antigo”, pensou, mas a explicação soava vazia. As marcas eram frescas, a terra ainda solta, e havia um padrão nelas — um ritmo deliberado, como se o que as fez soubesse para onde ia. Um calafrio percorreu sua nuca, e ele olhou ao redor, o coração acelerando, esperando ver algo emergir das sombras das árvores. Mas o terreno estava deserto, envolto em uma quietude que parecia sufocá-lo, pressionando seus tímpanos como se o ar estivesse carregado de expectativa.
As árvores rangiam ao vento, seus galhos nus como ossos secos, e o silêncio era tão denso que parecia vivo. Hiroshi se levantou, sacudindo a cabeça para afastar os pensamentos. “É só minha imaginação”, disse, mas as palavras se dissolveram no ar pesado. Ele tirou mais fotos — uma poça de lama que refletia o céu como um espelho quebrado, uma fenda no solo que parecia uma ferida sangrando umidade — e decidiu entrar no prédio. “Hora de ver o interior”, murmurou, tentando soar corajoso, embora seu coração batesse descompassado.
O portão de ferro, torto e enferrujado, estava entreaberto, suas barras retorcidas como uma boca escancarada. Hiroshi hesitou, os dedos pairando sobre o metal gelado, a ferrugem áspera queimando de tão fria. Quando o empurrou, o rangido foi agudo, como um grito de algo que não queria ser perturbado, ecoando pelo terreno e misturando-se ao sussurro do vento. Ele engoliu em seco, a garganta seca como areia, e cruzou o limiar.
O cheiro o atingiu como um soco: mofo, madeira apodrecida e um odor metálico que lembrava sangue seco misturado com ferrugem. Ele franziu o nariz, mas continuou, os tênis rangendo contra o chão coberto de folhas secas e detritos. Cada passo ecoava no vazio, amplificado como se o prédio conspirasse para mantê-lo alerta.
O pátio interno era um túmulo a céu aberto. Carteiras e cadeiras estavam espalhadas como restos de um naufrágio, algumas empilhadas em montes caóticos, outras tombadas, as pernas quebradas apontando para o céu como ossos fraturados. Livros antigos jaziam no chão, páginas amareladas rasgadas e manchadas, flutuando levemente com a brisa que atravessava as janelas quebradas. Nas paredes, rabiscos formavam um mosaico de desespero: nomes riscados com força, datas desconexas saltando entre décadas, frases como “me tirem daqui” e “ele está vendo”, escritas em traços trêmulos que pareciam gritar. Hiroshi sentiu um nó na garganta, mas forçou um sorriso irônico. “Adolescentes entediados”, pensou, tentando ignorar o peso das palavras.
Uma lousa quebrada no canto chamou sua atenção, partida ao meio, as bordas enegrecidas como se lambidas por fogo. Ele se aproximou, os passos ecoando no silêncio opressivo. Sob a fuligem, uma frase quase ilegível: Não olhe para trás. A caligrafia tremida sugeria urgência, talvez terror. Hiroshi riu nervosamente, o som cortando o ar como uma lâmina. “Ótimo, agora estou em um filme de terror”, disse, mas o eco de sua voz reverberou, aumentando sua inquietação.
Sua mente voltou à conversa com a Sra. Fumiko Sato, sua professora de geografia. Aos 29 anos, ela tinha uma seriedade que a fazia parecer mais velha, com cabelos pretos lisos caindo até os ombros e óculos de armação fina, ligeiramente tortos. Na tarde anterior, ela o puxara de lado, a voz baixa e hesitante. “Tenha cuidado, Hiroshi-kun. Aquele lugar tem uma história sombria. Um incêndio matou dezenas de alunos e professores décadas atrás, e ninguém fica lá por muito tempo.” Ele descartara o aviso, rindo internamente. Mas agora, com aquelas palavras gravadas na lousa, a dúvida começava a corroer sua lógica.
Respirando fundo, ele continuou, subindo as escadas rangentes para o segundo andar. O corrimão estava coberto por uma substância pegajosa, escura e viscosa, que aderiu aos seus dedos quando os encostou por acidente. Ele esfregou as mãos nas calças, o nojo misturando-se ao desconforto. O corredor do segundo andar era longo e sombrio, ladeado por portas fechadas, exceto uma, entreaberta, de onde vinha uma luz fraca e azulada, pulsando como uma chama distante.
Hiroshi hesitou, o coração acelerando. “É a única sala iluminada”, murmurou, sentindo o tamborilar em seus ouvidos. Ele empurrou a porta, e o que viu o deixou sem ar.
A sala estava cheia de equipamentos eletrônicos modernos: microfones de alta sensibilidade alinhados como sentinelas, monitores brilhando com luzes verdes e vermelhas, computadores exibindo gráficos em movimento — linhas ondulantes que subiam e desciam em picos erráticos, como o batimento cardíaco de algo vivo. Hiroshi franziu a testa, o choque superando o medo. “Como isso é possível? Não deveria ter eletricidade aqui…” Ele avistou um gerador zumbindo em um canto, um intruso anacrônico naquele túmulo de madeira. “Alguém esteve aqui recentemente”, concluiu, um misto de alívio e apreensão tomando conta dele.
Ele se aproximou da mesa principal, onde os microfones estavam dispostos em fileiras silenciosas. Os gráficos nas telas aceleravam, os picos mais intensos, como se reagissem à sua presença. “O que estão monitorando?”, perguntou-se, inclinando-se para examinar os dados. Não havia legendas, apenas números e linhas dançando em um ritmo caótico. Sentindo-se ousado, ele pegou um microfone, o metal frio contra sua palma suada. “O-olá… Tem alguém aí?”, sussurrou, hesitante.
O som de sua voz ecoou pela escola. Ele se arrependeu instantaneamente, o ar tornando-se mais denso, como uma mão invisível pressionando seu peito. Dos alto-falantes, uma voz distorcida respondeu: “S-s-sim… estamos aqui.” Cada sílaba arranhava o ar, carregada de uma presença que ele sentia na pele, nos ossos, mas não podia explicar.
Hiroshi congelou, o microfone caindo com um baque surdo. “Isso não é possível”, disse, a voz trêmula enquanto buscava uma explicação racional. “Deve ser uma gravação.” Mas um estrondo ensurdecedor irrompeu do andar de baixo, o chão tremendo violentamente, jogando-o contra a mesa. Portas no corredor bateram em sequência, como dominós caindo, e as janelas vibraram, o vidro rachado ameaçando se estilhaçar. O ar ficou denso com o cheiro de queimado, um fedor que invadiu suas narinas como uma memória viva.
— O que foi isso? — exclamou, o pânico subindo pela garganta como bile. Ele correu para a porta, tropeçando nos cabos, mas o corredor havia mudado. As sombras pareciam mais longas, esticando-se como dedos famintos. Ele viu silhuetas indistintas nas aberturas — crianças com rostos escondidos, professores com feições embaçadas — mas, ao focar, elas desapareciam como miragens. “Não é real”, repetiu, as palavras um escudo frágil contra o medo que apertava seu coração.
Ele se lançou às escadas, os degraus rangendo em protesto. Mãos invisíveis roçavam seus braços, deixando rastros frios em sua pele. Passos ecoavam do andar abaixo, rápidos e pesados, subindo em sua direção. Um segundo estrondo explodiu, e o chão cedeu com um estalo violento. Hiroshi caiu, rolando pelos degraus em um borrão de madeira e poeira. Antes de perder a consciência, viu a escola em chamas, vigas incandescentes desabando, crianças gritando enquanto o fogo as engolia. O calor era real, queimando sua pele, e o cheiro de carne queimada encheu suas narinas.
— Está tão quente… — sussurrou, as palavras se perdendo na escuridão que o engoliu.
Quando Hiroshi abriu os olhos, a luz branca do hospital o cegou, ferindo suas retinas como agulhas. Ele piscou, a cabeça latejando, enquanto vozes abafadas se formavam ao seu redor. Uma enfermeira organizava papéis em um canto, seus movimentos precisos contrastando com a confusão em sua mente. Ele virou a cabeça, o pescoço rígido, e viu um senhor idoso na cama ao lado, conversando com uma mulher de semblante preocupado.
— Estou bem, Sayuri. Não se preocupe tanto — disse o homem, Kazuo, com uma voz calma que inspirava confiança.
— Kazuo, você sempre me deixa com o coração na mão… — respondeu Sayuri, apertando a mão dele, os dedos trêmulos.
A porta do quarto se abriu com um estrondo, e uma jovem entrou, os olhos azuis ardendo de raiva. Era Yuki Nakamura. Ela marchou até a cama de Kazuo, ignorando a enfermeira. — Vovô! O que você estava pensando?! — gritou, apontando para Hiroshi. — Você se jogou na frente daquele idiota?!
Hiroshi ergueu a cabeça, confuso, sentindo uma onda de tontura. — Espera, o que eu fiz? — perguntou, a voz rouca.
Yuki virou-se para ele, os punhos cerrados. — Se não fosse por você, meu avô não estaria assim! Ele se machucou para te salvar, seu irresponsável!
A culpa o atingiu como um soco. — Eu não pedi para ele fazer isso… — murmurou, flashes da escola voltando: o fogo, os gritos, o calor sufocante.
— Isso não muda nada! — retrucou Yuki, o tom cortante. — Ele arriscou a vida por sua causa!
— Yuki, acalme-se — interveio Sayuri, a voz suave, mas firme. — O importante é que ele está bem agora.
Kazuo sorriu, um brilho astuto em seus olhos enrugados. — Hiroshi, não se culpe tanto, garoto. Isso faz parte do meu trabalho.
Hiroshi franziu a testa. — Trabalho? Que trabalho?
— Eu sou um caçador de fantasmas — disse Kazuo, com naturalidade. — Quando te vi em perigo, fiz o que tinha que fazer.
— Caçador de fantasmas…? — Hiroshi olhou para Yuki, buscando confirmação. Ela bufou, cruzando os braços.
— Sim, e eu sou a assistente dele. E agora, por sua culpa, vou precisar de ajuda extra enquanto ele se recupera.
Kazuo endireitou-se na cama, o tom firme. — Hiroshi, você será o assistente de Yuki enquanto eu me recupero. Quebrei a perna te salvando, então é justo que assuma essa responsabilidade.
Hiroshi piscou, atônito, o quarto girando levemente. — Mas eu não sei nada sobre caçar fantasmas…
Sayuri sorriu, gentil, mas decidida. — As coisas acontecem por uma razão, Hiroshi-kun. Yuki vai precisar de alguém, quer ela admita ou não.
Kazuo fixou os olhos nele, com uma intensidade que atravessava. — Não é uma escolha, garoto. Você vai ajudá-la. E quem sabe… talvez descubra algo interessante no caminho.
Hiroshi sentiu o peso daquelas palavras como uma corrente ao redor de seu pescoço. Seu ceticismo, a muralha de lógica que sempre o protegera, estava rachando. Diante dele, abria-se um abismo de mistérios que ele não podia mais ignorar.